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sábado, 27/04/2024

Procuradoria Geral de Justiça do Estado de Mato Grosso

Como se noticiou nas principais mídias, as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, foram envolvidas no caso dos 207 trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves/RS, uma vez que contratavam os serviços terceirizados da empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda., flagrada na ocasião.

Esse fato impactou negativamente a imagem das empresas e trouxe outras consequências: as vinícolas foram suspensas da ApexBrasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) e, no dia 09 de março de 2023, assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) de R$ 7.000.000,00 (sete milhões de reais) com o Ministério Público do Trabalho (MPT).

Diante desse contexto fático, indaga-se: como empresas que contratam serviços terceirizados podem precaver-se de situações como essa e não terem seus nomes vinculados ao trabalho realizado em condição análoga à escravidão?

Antes de mais nada, é preciso salientar que não existe fórmula mágica, a complexidade e a rápida evolução dos negócios, com um mercado consumidor cada vez mais consciente, exigem monitoramento e aprimoramento constante por parte das empresas.

O que funciona hoje, pode não funcionar mais amanhã, daí por que este artigo de opinião não tem pretensão de esgotar o assunto nem apresentar milagres, mas sim contribuir com o debate e tratará especificamente sobre a importância da due diligence de terceiros em casos que tais.

Muito bem, em primeiro lugar, considera-se trabalho realizado em condição análoga à escravidão:

 

a que resulte das seguintes situações, quer em conjunto, quer isoladamente: a submissão de trabalhador a trabalhos forçados; a submissão de trabalhador a jornada exaustiva; a sujeição de trabalhador a condições degradantes de trabalho; a restrição da locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, ou por qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho; a vigilância ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho; a posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho. [1]

 

Nos dias atuais, é inconcebível a existência de trabalho realizado em condição análoga à escravidão, uma vez que constitui grave violação à dignidade da pessoa humana. A proteção ao trabalho, saliente-se, é uma das formas de assegurar a dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988).

Para evitar episódios como o que envolveu as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, um dos instrumentos que podem ser utilizados é a due diligence de terceiros.

A due diligence de terceiros consiste, basicamente, num procedimento de investigação de uma empresa, oportunidade em que poderão ser verificados fatores contábeis, financeiros, trabalhistas, previdenciários, jurídicos, tecnológicos, entre outros, ficando a abrangência vinculada ao escopo estabelecido.

Sobre a due diligence, Fábio Galindo, Marcelo Zenkner e Yoon Jung kim assim já escreveram:

 

Milhões de pessoas vivem, atualmente, em situação de extrema pobreza porque padrões sociais mínimos, como a proibição do trabalho forçado e do trabalho infantil, são desconsiderados por diversas empresas. Aproximadamente 79 milhões de crianças em todo o mundo trabalham em condições de exploração em fábricas têxteis, pedreiras ou plantações de café. Ao mesmo tempo, florestas ricas em espécies estão sendo destruídas, especialmente nos trópicos, muitas vezes para abrir espaço para a criação de gado, para plantações de soja ou para outras monoculturas agrícolas, e a queima de combustíveis fósseis e as atividades industriais estão aumentando as concentrações atmosféricas de CO2 na atmosfera.

Por essas e outras razões, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas estabeleceu, em junho de 2011 e por unanimidade, os ´Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos´, os quais estão estruturados em três pilares – proteger, respeitar e reparar: (I) o dever do Estado de proteger contra abusos de direitos humanos por parte de terceiros, incluindo empresas; (II) a responsabilidade corporativa de respeitar os direitos humanos; e (III) o acesso das vítimas a recursos judiciais e não-judiciais para remediar e reparar violações.

O Item 17 da cartilha afeta a esses princípios trata especificamente da ´devida diligência em direitos humanos´, a qual, para ser efetiva, não deve se limitar à simples identificação e gestão dos riscos materiais para a própria empresa, mas deve também incluir os riscos que são inerentes aos próprios detentores desses direitos. [2]

A due diligence, registre-se ainda, é um dos pilares do sistema de integridade, esta hoje considerada como valor corporativo fundamental[3], conforme disposto no art. 57, XIII, “a”, do Decreto 11.129/2022, que prescreve:

 

Art. 57.  Para fins do disposto no inciso VIII do caput do art. 7º da Lei nº 12.846, de 2013, o programa de integridade será avaliado, quanto a sua existência e aplicação, de acordo com os seguintes parâmetros:

(…)

XIII – diligências apropriadas, baseadas em risco, para:

  1. a) contratação e, conforme o caso, supervisão de terceiros, tais como fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários, despachantes, consultores, representantes comerciais e associados; [4]

 

Apesar de não ser o escopo deste artigo, convém esclarecer que sistema de integridade consiste no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidade e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes, com objetivo de prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e fomentar e manter uma cultura de integridade no ambiente organizacional (art. 56, incisos I e II, Decreto 11.129/2022).

Na contratação de serviços terceirizados, afigura-se extremamente importante a realização da due diligence de terceiros como meio de antecipar, prevenir ou mitigar inconformidades e/ou impactos, devendo ser verificado, em especial, o aspecto trabalhista, sobretudo o pagamento dos encargos trabalhistas, as condições de trabalho e se o nome da empresa a ser contratada consta na lista suja do trabalho escravo, informações estas que podem não ter sido devidamente examinadas pelas vinícolas aqui citadas.

Hoje, ressalte-se, não basta mais olhar somente da porteira para dentro, mas também de dentro para fora, daí a importância da realização da devida diligência em toda cadeia de suprimentos.

A realização da due diligence em toda cadeia de suprimentos, saliente-se, vem ganhando cada vez mais relevância, tanto é verdade que na Alemanha foi promulgada a lei Act on Corporate Due Diligence Obligations in Supply Chains[5] (Lei das Obrigações Corporativas de Due Diligence na Cadeia de Suprimentos), que inclui o estabelecimento de um sistema de gestão de riscos para identificar, prevenir ou mitigar violações de direitos humanos e danos ao meio ambiente.

A OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), saliente-se, possui um guia[6] de devida diligência para uma conduta empresarial responsável, trazendo conceitos e estabelecendo um passo a passo para a realização desse procedimento, contemplando os temas de direitos humanos, empregos e relações trabalhistas, meio ambiente, combate à corrupção, direitos do consumidor e transparência.

Levando em consideração, ainda, os Princípios Orientadores da ONU (Organização da Nações Unidades) Sobre Empresas e Direitos Humanos, as empresas têm responsabilidade de observar a devida diligência em direitos humanos.

A realização da due diligence de terceiros, portanto, constitui um mecanismo eficaz de gerenciamento de risco que pode ajudar a evitar dores de cabeça como a que experimentou as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton. O custo da sua não realização, como se viu, pode ser elevado, podendo atingir inclusive a imagem reputacional de uma empresa.

E você, empresário, já realizou a devida diligência em toda a sua cadeia de suprimentos?

 

Deivison Roosevelt do Couto

ESG, riscos, governança e compliance no agronegócio

Advogado, sócio no escritório Prado Advogados Associados – Cuiabá/MT

Mestrando em Compliance pela Ambra University – Orlando, FL-EUA

Curso formação em integridade, prevenção e combate à corrupção – Instituto Ethos

Curso trabalhando a cultura organizacional e integridade nos negócios – Instituto Ethos

Compliance Officer de uma grande cooperativa agroindustrial em Campo Novo do Parecis/MT

[1]Combate ao Trabalho em Condições Análogas às de Escravo. Ministério do Trabalho e Previdência, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/composicao/orgaos-especificos/secretaria-de-trabalho/inspecao/areas-de-atuacao/combate-ao-trabalho-escravo-e-analogo-ao-de-escravo. Acesso em: 17/03/2023.

 

[2]GALINDO, Fábio; ZENKNER, Marcelo; KIM, Yoon Jung. Fundamentos do ESG: geração de valor para os negócios e para o mundo. Belo Horizonte: Fórum, 2023, pp. 256 e 257.

 

[3]GALINDO, Fábio; ZENKNER, Marcelo; KIM, Yoon Jung. Fundamentos do ESG: geração de valor para os negócios e para o mundo. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p 228.

[4] BRASIL. Decreto 11.129, de 11 de julho de 2022. Regulamenta a Lei 12.846, de 1º de agosto de 2013. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, edição 130, p. 1-5, 12 jul. 2022.

[5]Act on Corporate Due Diligence Obligations in Supply Chains. CSR, 2021. Disponível em: https://www.csr-in-deutschland.de/SharedDocs/Downloads/EN/act-corporate-due-diligence-obligations-supply-chains.pdf?__blob=publicationFile. Acesso em: 20/03/2023.

 

[6]Guia da OCDE de devida diligência para um conduta empresarial responsável. OCDE, 2018. Disponível em: https://mneguidelines.oecd.org/guia-da-ocde-de-devida-diligencia-para-uma-conduta-empresarial-responsavel-2.pdf. Acesso em: 20/03/2023.

 

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