A Lei 8.666/1993 nada menciona sobre recuperação judicial de empresas; e nem poderia, porque ao legislador não se defere o papel de vidente. Explicamos: a Lei Geral de Licitações data de 1993, enquanto a Lei que trata da recuperação judicial de empresas (Lei 11.101) é do ano de 2005.
Até 2005, portanto, não havia grande polêmica sobre esse tema, sobretudo porque o art. 31, II, da Lei 8.666/1993, quando da enumeração da documentação relativa à qualificação econômico-financeira das empresas licitantes, exigia a certidão negativa de falência ou concordata. Tratava-se, portanto, de uma mera interpretação literal.
Todavia, por descuido legislativo, quando a Lei 11.105/2005 foi promulgada, o legislador não cuidou para que houvesse a modificação do aludido art. 31, II, da Lei Geral de Licitações. Assim sendo, desde 2005, criou-se uma disputa acirrada quanto à possibilidade de empresas em recuperação judicial participarem de certames licitatórios.
Certo é que, sem maiores aprofundamentos quanto ao tema – sobretudo porque o espaço aqui não permite –, a recuperação judicial é bem diferente da concordada. Assim, se os institutos são diversos, pode-se entender que houve uma derrogação do aludido art. 31, II, Lei 8.666/1993, devendo-se interpretá-lo sem a restrição documental relacionada à recuperação judicial.
Os motivos para que a interpretação seja nesse sentido (de permitir a participação de empresas em recuperação judicial em certames licitatórios) são os mais diversos, a começar pela própria finalidade do instituto. Mas, mais que isso, pode-se pensar no exemplo de uma empresa de limpeza e conservação, ou mesmo no exemplo de uma empresa de segurança armada, em que a quase totalidade de seus contratos são firmados com o Poder Público. Em tais hipóteses, para que serviria a recuperação judicial se a recuperanda ficar impossibilitada de licitar?
Seguindo essa linha interpretativa, os tribunais vêm permitindo a participação de empresas em recuperação judicial em certames licitatórios. No entanto, deixam a cargo da Administração Pública a eventual verificação da real viabilidade econômico-financeira da empresa recuperanda licitante, o que muitas vezes gera dificuldade e insegurança não apenas para a própria empresa, mas também para o gestor público.
Em seu mais recente julgado sobre o tema, o Tribunal de Contas da União entendeu que “admite-se a participação, em licitações, de empresas em recuperação judicial, desde que amparadas em certidão emitida pela instância judicial competente afirmando que a interessada está apta econômica e financeiramente a participar de procedimento licitatório”[3].
No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “a exigência de apresentação de certidão negativa de recuperação judicial deve ser relativizada a fim de possibilitar à empresa em recuperação judicial participar do certame, desde que demonstre, na fase de habilitação, a sua viabilidade econômica”[4].
Em suma: a jurisprudência do TCU e do STJ parecem caminhar no sentido de não permitir a exigência de certidão negativa de recuperação judicial para que uma empresa participe de licitação, isto é, a empresa não pode ser desclassificada do certame pelo simples fato de estar em recuperação judicial.
Nada impede, porém, segundo os próprios precedentes do TCU e do STJ, que a comissão de licitação ou o pregoeiro façam uma análise técnica mais aprofundada, com o fim de averiguar se a empresa em recuperação judicial tem ou não viabilidade econômico-financeira para participar daquele certame.
Eis que, a partir daqui, uma questão interessante exige reflexão: que grau de discricionariedade deve ser dado para a Administração Pública, no que tange à sua possibilidade de alijar do certame determinada empresa em recuperação judicial?
O primeiro ponto a ser destacado, quanto a essa questão, é o seguinte: eventual ato de desclassificação da empresa em recuperação judicial deve ser o mais motivado possível, a fim de fornecer elementos suficientemente esclarecedores para um possível questionamento judicial posterior. Dito de outro modo, a comissão de licitação ou o pregoeiro devem, inarredavelmente, conferir o máximo de fundamentação a qualquer decisão administrativa que não permita a participação de determinada empresa em recuperação judicial em certames licitatórios.
A falha na fundamentação já alimenta e possibilita, por si só, a impetração de mandado de segurança, porque uma tacanha motivação pode ser encarada como violação a direito líquido e certo. Interessante, pois, que a comissão de licitação ou o pregoeiro fundamentem o ato de maneira adequada, com análise de balanços e demais índices demonstrativos da saúde financeira da potencial licitante.
Em caso de permissão para que a empresa em recuperação judicial participe de licitação, principalmente na hipótese de ela ser declarada vencedora do certame, a relevância e a imprescindibilidade da fundamentação, por parte da comissão ou do pregoeiro, são talvez até maiores, mas dessa vez como proteção ao próprio gestor público: afinal, se, no futuro, a recuperação judicial não for bem sucedida e a empresa falir, ficando impossibilitada de honrar suas obrigações com a Administração Pública contratante, o gestor pode ser responsabilizado por não ter feito uma análise bem fundamentada sobre a viabilidade econômico-financeira da empresa na época do certame licitatório.
Por fim, deve-se também questionar a possibilidade de a Administração Pública já excluir, em regra do próprio edital da respectiva licitação, a participação de empresas em recuperação judicial.
Parece-nos que isso deve ser possível, especialmente em contratações mais sensíveis, nas quais a complexidade do objeto do contrato e/ou o seu grande vulto econômico podem justificar a decisão do Poder Público de não querer assumir o ônus de contratar uma empresa em recuperação judicial, cuja situação de crise, aliada à incerteza do seu plano de soerguimento, agravam sobremaneira o risco de insucesso da respectiva contratação administrativa.
Mas também nesse caso, não custa lembrar, é absolutamente imprescindível que a Administração Pública, ao elaborar a regra editalícia que exclui a participação de empresas em recuperação judicial, fundamente de forma clara e detalhada sua decisão.
[1]Guilherme Carvalho é Doutor em Direito Administrativo e Mestre em Direito e Políticas Públicas. Ex-Procurador do Estado do Amapá e advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados. Bacharel em Administração. guilherme@guilhermecarvalho.adv.br
[2] André Santa Cruz é Procurador Federal, Doutor em Direito Empresarial pela PUC-SP e Professor de Direito Econômico e Empresarial do Centro Universitário IESB-DF.
[3] Acórdão 1201/2020, Plenário, Rel. Min. Vital do Rego.
[4] AREsp 309.867, 1ª Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria.