A Lei nº 14.133/2021 concedeu nova tratativa à contratação direta. Isso se justifica não apenas pelo expressivo aumento ao quantitativo dos limites para dispensa de licitação em razão do valor, como também pela ampliação do rol das hipóteses de dispensa e inexigibilidade.
Ao que parece, o legislador compreendeu que o processo de contratação pública é dispendioso, consumindo tempo e capital humano, como também esgotando parte dos precários recursos orçamentários que podem ser destinados a outras finalidades, sobretudo em benefício mais proveitoso que uma simplória licitação, cujo importe (financeiro ou por outro critério) não justifica um amplo processo de disputa para obtenção de uma relação contratual a ser firmada com a Administração Pública. Tudo deve e pode ser mais simples.
Seguindo o caminho já perfilhado na Lei de Estatais, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos alarga, expressivamente, os valores que permitem a contratação direta por dispensa de licitação, oportunizando maior maleabilidade ao gestor e concretizando, na prática, os princípios da eficiência e da eficácia, elegidos pelo legislador como norteadores do processo de contratação pública e que, por igual, vão ao encontro do princípio da economicidade.
Conforme acima mencionado, é inegável que, comparativamente à Lei nº 8.666/1993, também houve um incremento no rol de inexigibilidade e de dispensa, o que se comprova à luz de uma simples confrontação entre os dispositivos legais das duas leis. Os artigos 74 e 75 da Lei nº 14.133/2021 possuem mais incisos que seus correlatos (art. 25 e 24, respectivamente) previstos na Lei nº 8.666/1993.
Importante destacar ainda que, diferentemente da Lei nº 8.666/1993, a Lei nº 14.133/2021 dedica um capítulo específico à contratação direta, subdividido em três seções, o que evidencia a importância confiada pelo legislador ao assunto, especialmente porque, para além de apontar quais são as previsões para inexigibilidade (artigo 74) e dispensa (artigo 75), trata do processo de contratação direta (artigo 72), bem assim da contratação direta indevida (artigo 73).
Nada obstante o fato de a Lei nº 8.666/1993 não situar — especificadamente e em secção própria (tal como previsto no artigo 72, da Lei nº 14.133/2021) — uma normativa sobre o processo de contratação direta, regras mínimas sobre a matéria existem no artigo 26, as quais, embora não suficientes para contextualizar este característico processo de contratação pública, prelecionam alguns requisitos procedimentais básicos.
A grande novidade, contudo, diz respeito ao que a Nova Lei menciona como “contratação direta indevida”, prevista no artigo 73, o qual prescreve que “na hipótese de contratação direta indevida ocorrida com dolo, fraude ou erro grosseiro, o contratante e o agente público responsável responderão solidariamente pelo dano causado ao erário, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis”.
Cumpre evidenciar, primeiramente, que a contratação direta indevida é temática diversa da contratação direta ilegal, prevista no artigo 337-E, do Código Penal Brasileiro, cujo tipo penal é definido pelo legislador como “admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei”, tendo como penalidade a severa reclusão de quatro a oito anos e multa. Sobre este tipo penal, já tivemos a oportunidade de escrever neste mesmo portal. A contratação direta indevida diverge, portanto, da conduta criminal, especialmente pelo fato de não ocasionar os mesmos resultados da contratação direta ilegal, que requer, necessariamente, um dolo específico.
Vários pontos devem ser registrados quanto à contratação direta indevida. O primeiro deles diz respeito à precariedade do termo utilizado pelo legislador. Nada obstante o adjetivo “indevida” seja diverso do epíteto “ilegal”, deve-se evitar qualquer intepretação ampliativa ao artigo 73, como se toda contratação indevida ocasionasse, consectariamente, uma conduta criminal.
Inicialmente, para que haja contratação direta indevida é condição indispensável o manifesto dano ao erário. Portanto, sem prejuízo ao erário, impossível a incidência da norma prevista no artigo 73. Além disso, a defeituosa avaliação das circunstâncias fáticas não cria, por si só, o dever de indenizar, sendo imprescindível que o sujeito ignore a disciplina legal, com dolo, fraude ou inequívoco erro grosseiro.
O legislador foi enfático ao mencionar as expressões dolo, fraude ou erro grosseiro, significando dizer que não há responsabilização por presunção. Cabe, portanto, à Administração Pública o ônus de comprovar o prejuízo estatal, com demonstração clara e precisa de que houve sobrepreço ou superfaturamento na contratação, aptos a imputar alguma irregularidade e cominar responsabilização pelo dano causado.
“Além disso, o art. 73 segue a lógica do artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), com redação dada pela Lei nº 13.655/2018. Significa dizer que a autoridade pública só responderá se provado dolo ou erro grosseiro em sua conduta”[1]. Por igual, é impossível a aplicação do artigo 73 sem que haja a presença, no processo de contratação direta, de algum agente administrativo, sendo impraticável atribuir o ressarcimento isoladamente ao contratado.
Ainda quanto à terminologia adotada, a abordagem utilizada pelo legislador é diversa da criminal, uma vez que, na parte final do artigo 73, utiliza a expressão “(…) sem prejuízos de outras sanções legais cabíveis”. Assim sendo, por exclusão, é plenamente compreensível que a contratação direta indevida não pode, sob qualquer enfoque, ser confundida com a contratação direta ilegal.
Todavia, a deficiência de técnica normativa é alarmante. Quando o legislador se refere a “(…) outras sanções legais cabíveis”, remanesce a dúvida em saber como ocorrerá a responsabilização do agente público e do contratado pelo suposto dano causado ao erário. Este ponto em específico carece de mais aprofundada explanação.
Assim sendo, qual o meio processual ou procedimental para apuração da responsabilidade do contratado e do agente público responsável pela contratação direta indevida? Há dois caminhos para solucionar esta indagação. Se se interpreta a expressão “(…) sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis” como sendo, exclusivamente, a sanção criminal tipificada como “crime de contratação direta ilegal”, tudo leva a crer que a apuração da responsabilidade ocorrerá pelas vias previstas na Lei de Improbidade, Lei Anticorrupção e, em se tratando de um agente público, cumulativamente por meio de um processo administrativo de cunho disciplinar. Todavia, esta não é a melhor interpretação.
Primeiramente, porque, se o legislador houvesse delimitado a nomenclatura “(…) outras sanções legais cabíveis” ao crime previsto no artigo 337-E, do Código Penal Brasileiro, certamente haveria empregado a seguinte expressão: “(…) sem prejuízo da sanção penal prevista no artigo 337-E, do Código Penal Brasileiro”. Segundo, porque o termo “(…) outras sanções legais cabíveis” pode também compreender a responsabilidade com base nos outros regramentos a que se fez referência no parágrafo anterior (Lei nº 8.429/1992, Lei nº 12.846/2013 e respectivo estatuto disciplinar do agente público).
Logo, a responsabilidade solidária do contratado e do agente responsável se resume ao ressarcimento do dano, se houver, o que pode ocorrer, inclusive, por meio de práticas conciliatórias, ao ensejo da norma prevista no parágrafo único do artigo 151 da Lei nº 14.133/2021, a qual vaticina que o cálculo de indenizações são direitos patrimoniais disponíveis submetidos aos meios alternativos de solução de controvérsias.
À guisa dessa explanação, a apuração da responsabilidade pela contratação direta indevida, se configurado dano ao erário e se existente dolo, fraude ou erro grosseiro, não deságua, impostergavelmente, em “outras sanções legais cabíveis”, sendo que estas somente terão lugar se houver elementos que atraiam as condutas tipificadas nas respectivas legislações que tratam sobre o tema.
Assim, nem todo dano ao erário decorrente de contratação direta indevida configura atos de improbidade, práticas de corrupção ou falta funcional aptos a deflagrarem processos específicos neste sentido. Mais que isso, nem toda contratação direta indevida oportuniza a abertura de um processo criminal.
A disciplina normativa impõe separações evidentes, cujas interpretações são servientes ao desiderato almejado pelo legislador, que, expressivamente, manifesta-se no sentido de conferir maior autonomia à Administração Pública no que concerne à contratação direta. Sem prejuízo das constantes práticas de controle inerentes às contratações públicas, o temor deve ser evitado, sendo imperioso não alargar, demasiadamente, o conteúdo expressado no artigo 73, da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
[1] HEINEN, Juliano. Comentários à Lei de licitações e contratos administrativos (Lei nº 14.133/2021). Salvador: JusPODIVM. 2021, p. 388.
Fonte: Conjur