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sexta-feira, 26/04/2024

Advogados tiveram papel fundamental na resistência à ditadura

Por Técio Lins e Silva
O primeiro de abril que não era mentira, foi vivido pelos estudantes da Faculdade Nacional de Direito, em vigília para defender o velho prédio que foi sede do Senado do Império, na Praça da República, no Rio de Janeiro.

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A véspera do Golpe já era um prenúncio do que acabou acontecendo. Os estudantes do CACO, Centro Acadêmico de tantas e tão gloriosas lutas democráticas, permaneceram na Faculdade em vigília cívica. Passamos toda a noite sob a tensão que dominava o país.
Havia a ameaça concreta de que os terroristas iriam botar fogo na Faculdade e, por este motivo, foi deliberado que passaríamos a noite ali, para resistir a qualquer atentado. Era tão concreta a ameaça que o prédio da UNE, na Praia do Flamengo, foi incendiado num ato terrorista jamais investigado. Os autores do ataque contra o símbolo maior da representação estudantil jamais foram revelados.
Não se conhece nenhuma ação das autoridades, nenhuma investigação, inquérito ou processo para apurar o bárbaro crime cometido contra o patrimônio nacional e os estudantes brasileiros. Passamos a noite toda no Salão Nobre, no segundo andar, com as luzes apagadas e observando das janelas que davam visão perfeita para a rua. A tensão era a de que a qualquer momento poderiam atacar a Faculdade. O sentimento coletivo era o de que seríamos capazes da resistência. Santa ingenuidade!
Nada aconteceu durante a noite. Mas no dia seguinte, em pleno 1º de abril e com o golpe já instalado no país, a ameaça de invasão era concreta, por parte da polícia e demais forças de segurança. Os estudantes fizeram uma barricada para evitar a invasão, mas na iminência de sua concretização, fomos salvos por um Comando do Exército que veio em nosso socorro.
O então Capitão Ivan Cavalcanti Proença, Oficial dos Dragões da Independência, que se encontrava no Edifício do Ministério do Exército, recebeu a notícia de que os estudantes de Direito corriam o risco de serem massacrados na Faculdade que ficava a poucos metros dali. Num gesto sem precedentes, provavelmente inspirado num sentimento de honra e bravura, reuniu os homens sob o seu Comando e partiu para o local onde estavam os estudantes em barricada. Afastou as forças que ameaçavam os estudantes, arrombou a porta da Faculdade e assegurou que todos saíssem em segurança, em grupos de cinco, impedindo qualquer retaliação.
Após a libertação dos estudantes, o bravo militar retornou para o seu local de trabalho no Ministério do Exército, onde foi imediatamente preso e amargou ele próprio a retaliação que evitou aos estudantes que libertou.
Dali em diante as coisas pioraram muito. O CACO foi fechado, os seus dirigentes responderam a IPM que foi instaurado e funcionou na Sala dos Professores, onde se aboletou um Coronel do Exército que ali tomava os depoimentos dos alunos, funcionários e professores.
Remetido inicialmente para a Justiça comum, os diretores do CACO foram denunciados pelo Promotor Público da Vara Criminal, em 1964, incursos na Lei de Segurança Nacional, acusados da prática de crimes mirabolantes.
No ano seguinte, o AI-2 transferiu para a Justiça Militar o julgamento de todos os acusados de crimes contra a segurança nacional, civis e militares. O processo foi distribuído para uma das Auditorias do Exército, mas a impetração de um Habeas Corpus perante o STM, articulado por meu pai, advogado Raul Lins e Silva, trancou a ação penal por falta de justa causa. Assim, os dirigentes do CACO, fechado em abril de 1964, se libertaram do processo político e ficaram livres da perseguição judiciária.
Esta é a primeira demonstração de que era possível a obtenção de resultados positivos perante a Justiça Militar. Tantos foram os Habeas Corpus concedidos pelo STM, nos primeiros anos do Golpe, que o Ato Institucional nº 5, de 13/12/1968, suspendeu a sua possibilidade para crimes políticos.
Na verdade, o Golpe assumiu a sua face mais perversa a partir de 1968, ao cassar a própria Justiça Militar, impedindo-a de apreciar as ilegalidades e os abusos de poder por esta via fundamental do estado de direito democrático.
Aumentou, desse modo, as dificuldades de advogar perante a justiça castrense. Mas os advogados reagiram à retirada desse instrumento mantendo a mesma postura de levar à Corte a notícia das ilegalidades. Sem chamar de habeas corpus, nós dirigíamos ao presidente do STM a notícia de uma prisão arbitrária qualquer, apontávamos a autoridade coatora e o tribunal solicitava as informações a respeito.
O resultado era quase sempre positivo, sobretudo quando a autoridade respondia confirmando a prisão, mesmo informando que se tratava de subversivo incurso na lei de segurança e, portanto, sem direito a habeas corpus. Assim estava cumprida missão de defesa, pois legalizada a prisão era uma garantia de que o preso não desapareceria e a tortura seria mais comedida para não matar o preso !
Tristes tempos !
A ditadura militar brasileira, através de seus 17 Atos Institucionais editados sem qualquer legitimidade e regulamentados por 104 atos complementares, desmantelou os Poderes e órgãos do Estado, ignorando e tornando letra morta a Constituição Federal Brasileira. Suspendeu a democracia e criou um Estado de exceção, enterrando o Estado de direito e as instituições democráticas.
O regime foi enrijecendo ano após ano e, no período entre 1968 a 1978, o Brasil viveu os piores momentos da repressão. O despótico AI-5 sepultou de vez a democracia, proibindo qualquer manifestação de natureza política, autorizando a cassação dos mandatos eletivos, a suspensão dos direitos políticos, a demissão ou aposentadoria de juízes e de funcionários públicos, o fechamento do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas estaduais, a suspensão do habeas corpus nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Menos de um ano depois, em setembro de 1969, foi editada a severíssima Lei de Segurança Nacional, na verdade um Decreto-Lei – nº 898/69 – que punia os “subversivos” com dez, vinte, trinta anos de cadeia, prisão perpétua e até com a pena de morte.
O regramento excepcional criado pelo Regime Militar praticamente impossibilitava a defesa dos presos políticos, pois nada pode ferir mais a luta pela defesa da liberdade do que o fim de seu melhor instrumento, seu remédio heroico, o habeas corpus. Eu próprio vivi intensamente os anos da ditadura e sou testemunha ocular dessa recente história, em que as liberdades e outros tantos direitos fundamentais estiveram rompidos, impedindo que o exercício da Advocacia pudesse ser realizado de maneira livre, pois havia até mesmo a incomunicabilidade do preso em relação ao advogado, disciplinada pela lei!
Nesse período, a Ordem dos Advogados do Brasil exerceu um papel fundamental. Desconstituir a prova produzida sob tortura, oficializada como método de investigação penal, passou a ser o objetivo principal dos advogados criminais que se dedicaram à defesa dos perseguidos políticos. Aplicava-se este procedimento odioso, inconcebível, como maneira de se apurar os fatos, sempre à custa de intenso sofrimento físico, punindo-se os cidadãos, muitas vezes, pelo simples fato de se associarem, fazerem parte de organizações ou por divulgarem suas ideias.
Considerava-se crime, como em qualquer estado ditatorial, discordar das ideias dominantes, manifestar-se contra o governo. Não se podia exercer sequer o direito de reunião, porque tal, por si só, já seria considerado uma ameaça à segurança nacional. Naquele período, qualquer atividade era considerada proibida e promover greve ou fazer propaganda subversiva, realizar comício, reunião pública, desfile ou passeata também eram considerados crimes contra a Segurança Nacional. A sede da UNE – União Nacional dos Estudantes, na Praia do Flamengo, foi incendiada na noite do golpe e os Diretórios e representações estudantis foram todos fechados.
Por mais inconcebível que isso possa parecer, não era possível, nem mesmo avistar-se com o cliente preso, pois a Lei de Segurança Nacional, de 1969, estabelecia um prazo de incomunicabilidade de 10 dias. Assim, antes da elaboração de qualquer estratégia de defesa, o Advogado precisava localizar o preso para tentar quebrar a incomunicabilidade que era sempre imposta. Isso sem poder fazer uso de habeas corpus! As conversas, quando finalmente autorizadas, freqüentemente se davam diante de agentes da ditadura, de modo que o segundo desafio do Advogado era conseguir um mínimo de privacidade.
Os chamados “anos de chumbo” da ditadura, período que se estende, basicamente, do final de 1968, até o término do governo Médici, em março de 1974, foram os mais repressivos, com muitas prisões injustas, torturas e mortes. Os desmandos do Estado totalitário incluíam, ainda, o recrudescimento da censura prévia à imprensa, à música, ao teatro e ao cinema, bem como o cerceamento absoluto da liberdade de expressão, manifestação e pensamento. A atividade intelectual, cultural e artística estava ferida de morte!
Durante quase dez anos, a Lei previu pena de morte para crimes políticos. O Decreto-Lei nº 898/69 atribuía aos juízes militares poderes de vida ou morte sobre os indivíduos até dezembro 1978, quando foi editada a Lei nº 6620/1978, denominado “Nova Lei de Segurança Nacional” que, embora mantivesse as mesmas tipificações penais da lei anterior, ao menos diminuiu significativamente as penas atribuídas aos crimes contra a Segurança Nacional.
Justiça, entretanto, se faça: o Superior Tribunal Militar, como de resto todo o judiciário castrense, manteve conduta digna de registro. A autoridade que a Justiça Militar tinha e a maneira com que se comportou foram responsáveis por conter excessos e permitir a atuação dos Advogados, respeitando a sua ação em defesa dos perseguidos. Basta dizer em sua defesa que não foi mantida nenhuma pena de prisão perpétua nem aplicada nenhuma pena de morte, previstas pela lei.
Não fosse essa digna atuação da Justiça Militar nos anos de chumbo, teríamos sucumbido, como aconteceu em muitos outros países do continente, também submetidos a regimes militares de força. Este registro é sempre bom que se faça, posto que corresponde ao depoimento unânime de todos os Advogados que atuaram nesse campo.
É igualmente verdade que os Advogados desempenharam um papel fundamental na resistência à ditadura e na luta para a sua derrubada. Não fosse a tenacidade, bravura, criatividade, desprendimento, generosidade e competência dos Advogados brasileiros, nossa História seria outra.
É gratificante os registros que estão sendo feitos sobre a luta dos Advogados contra a ditadura. São importantes para a compreensão de seu papel. Há vários livros que registram essa luta. O Departamento de Pesquisa da PUC/RJ foi condutor do livro editado em parceria com a Ed. Vozes. sobre parte da vida dos Advogados contra a Ditadura. A Fundação Getúlio Vargas e o Ministério da Justiça, por intermédio da sua Comissão de Anistia, editaram outra obra fundamental, com o registro dos Advogados protagonistas dessa luta. O deputado José Mentor também cuidou da edição de outro livro homenageando os Advogados desses tempos heroicos.
Tudo isso revela a memória de um tempo que não podemos esquecer, para que todos saibam o que aconteceu e cada um contribua para que nunca mais isso se repita, para a felicidade de todos, a paz e o bem da humanidade!
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