Anteriormente ao advento da Lei nº 14.133/2021, o Sistema de Registro de Preços (SRP), regulado por sucessivos decretos, já era bastante utilizado pela administração pública brasileira, passando a ser, na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, um procedimento auxiliar das licitações e das contratações por ela regidas.
São vários os dispositivos legais que se destinam a tratar sobre o tema, sendo relevante o conceito trazido no inciso XLV do artigo 6º da Lei nº 14.133/2021, que define o Sistema de Registro de Preços como o “conjunto de procedimentos para realização, mediante contratação direta ou licitação nas modalidades pregão ou concorrência, de registro formal de preços relativos a prestação de serviços, a obras e a aquisição e locação de bens para contratações futuras”.
Por sua vez, a lei (inciso XLVI) também conceitua o documento oriundo do SRP, a ata de registro de preços (ARP), como sendo “documento vinculativo e obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, no qual são registrados o objeto, os preços, os fornecedores, os órgãos participantes e as condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no edital da licitação, no aviso ou instrumento de contratação direta e nas propostas apresentadas”.
Para além de definições legais previstas nos subsequentes incisos XLVII (órgão ou entidade gerenciadora), XLVIII (órgão ou entidade participante) e XLIX (órgão ou entidade não participante), vários outros dispositivos, dispersos no corpo normativo, tratam sobre o Sistema de Registro de Preços.
Carona
Nada obstante a riqueza que acompanha o tema, o presente artigo destina-se à abordagem da adesão à ata de registro de preços por órgãos e entidades não participantes da licitação. De fato, até que ponto a figura do carona pode ser vista como um benefício ou um fiel desvio à imparcialidade e à isonomia esperadas do processo licitatório?
Decerto, há pontos positivos e negativos, os quais devem ser avaliados na prática e em cada caso em concreto. Esta parcial conclusão indica que não é tão aceitável incidir em uma armadilha metonímica, como se um exemplo pontual sacrificasse algum significativo amparo advindo da utilização do carona.
A antecipada conclusão mencionada no parágrafo anterior não desconhece os abusos que, rotineiramente, são cometidos com a utilização desenfreada das atas de registro de preços. Logo, não há qualquer contemplação com a corrupção; muito ao contrário, muito mais um desígnio de promover a “banda proveitosa” do carona.
A despeito da desaprovação pelos órgãos de controle, o preconceito legislativo já é o bastante para que, em alguma oportunidade, haja uma demonização quanto às adesões às atas de registro de preços (ARP). O § 8º do artigo 86 da Lei nº 14.133/2021 demonstra, sem qualquer pejo, uma superioridade ao poder público federal: “será vedada aos órgãos e entidades da administração pública federal a adesão à ata de registro de preços gerenciada por órgão ou entidade estadual, distrital ou municipal”.
De tal modo, o legislador parte do pressuposto de que há uma preeminência da administração pública federal sobre as entidades estaduais, municipais ou distritais, independentemente do objeto licitado e do conteúdo da ata de registro de preços.
Perfilhando esse caminho de supremacia hierárquica, estariam os estados e Distrito Federal impedidos de aderirem às atas de registro de preços dos municípios? Se sim, por quê? Tais indagações são inquietantes e distraídas de qualquer motivação de conteúdo econômico.
O Produto Interno Bruto (PIB) de vários municípios do interior do Brasil (não necessariamente as capitais) são maiores que de vários (não apenas um — perdão à tautologia) estados da Federação. Em tal sentido, se licitação e contratação pública têm uma correlação siamesa com o PIB, por qual razão, exemplificativamente, o estado de Roraima ou do Amapá não poderia aderir a uma ARP de Campinas (SP), Joinville (SC), Uberlândia (MG)? Simplesmente por que a estrutura federativa impõe aos estados uma superioridade em relação aos municípios?
A adesão à ARP é o demonstrativo claro de um emblema que nem mesmo o constituinte originário soube solucionar. Cite-se, como mero exemplo (e dentro do contexto do debate aqui trazido), que União (artigo 131, CF/1988), estados e Distrito Federal (artigo 132, CF/1988) são obrigados a estruturarem a advocacia pública em Procuradorias, ao passo que, aos municípios, o constituinte não destinou um dispositivo legal específico, como se o controle interno destes “menores” entes federativos pudesse ser mais precário ou exercido sem tanta rigidez.
Logo, nem sempre a carona a uma ARP deve ser encarada como um ato corruptivo ou que se desvie das finalidades do processo licitatório (artigo 11) e dos princípios que o regem (artigo 5º), porquanto, em determinadas circunstâncias, pode ter efeitos mais favoráveis e proveitosos, seja no que toca à eficiência e economicidade, seja por deferência a um dos significativos propósitos especificados na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), designadamente consequências práticas da decisão (artigo 20) e obstáculos e situações reais enfrentadas pelos gestor (artigo 22).
É ilógico (perdão à pretensiosa afirmação) um pequeno estado da Federação (insisto no exemplo do estado para não problematizar apenas os municípios) promover um processo licitatório para a aquisição de um caminhão (com características específicas) para um órgão como o Corpo de Bombeiros Militar se existe uma ARP disponível no mercado (expressão também proposital) e, possivelmente, com um melhor custo-benefício (leia-se, menor preço e mais vantajoso).
Excesso de legalidade e tentativa de perfeição burocrática não elide corrupção. Se assim fosse, todo e qualquer modelo licitatório, cumpridos todos os inúmeros requisitos da lei, estariam indenes de contrafações, cenário não compatível com a rotina da administração pública brasileira.
Logo, nem de longe devem ser aplaudidas as recomendações, acórdãos e afins dos órgãos de controle externo que impossibilitam a carona às atas de registro de preços.
Considerando que os parasitas são eternos, sacrificar o hospedeiro para acabar com o parasita não é uma solução inteligente, tampouco viável.