O medo e a insegurança de recomeçar, de refazer a vida com os filhos, são os sentimentos de Josefa*, uma trabalhadora rural que, aos 37 anos, se sente acuada, sem saber o que vai ser da sua vida depois que conseguir voltar para a casa dos pais em uma cidade no interior de Mato Grosso. Ela sofreu diversos tipos de agressões por parte do marido, com quem foi casada por seis anos: moral e psicológica, como ameaças e humilhações. Mas o estopim para ela sair de casa foi quando percebeu que seu companheiro estava molestando sexualmente sua filha, enteada dele.
Josefa notou comportamento diferente do marido em relação à filha e passou a observar que ele entrava frequentemente no quarto dela. “Num dia, coloquei uma câmera lá dentro e vi ele pegando nas partes íntimas de uma delas, que tinha 13 anos na época”. Esses atos eram frequentes, mas ele ameaçava a menor com uma faca dizendo que mataria a mãe e os irmãos se ela contasse o que estava acontecendo.
“Quando eu o conheci, ele não era agressivo. Ele começou a mudar o comportamento depois de dois anos que a gente estava casado. Passou a beber mais, chegava em casa bêbado e me xingava na frente das crianças. Até parei de ir à igreja porque ele achava que eu ia no culto para me deitar com os pastores ou prostituir minhas filhas”, contou.
Hoje aos 15 anos, Karine*, filha de Josefa, recorda que o padrasto chegava em casa agressivo, querendo bater nela e nos irmãos. Quando ele via que a mulher não estava por perto, acabava assediando-a. Passava a mão na adolescente e pedia para que abaixasse a roupa. “Se a gente não fizesse isso, ele pegava a faca e falava que se eu contasse para a minha mãe ele ia matar a família inteira. Eu tinha muito medo e quando percebi que minha mãe desconfiava eu contei para ela. Eu vi que se eu não contasse algo podia acontecer de pior”.
Josefa, que morava num assentamento, conversou com a filha, que relatou o ocorrido. A partir de então a mãe não dormia direito, sempre vigiando as filhas durante a noite. Começou ficar depressiva e perdeu 12 quilos em um mês. Mesmo com as ameaças do marido, ela e os cinco filhos saíram de casa no mês de maio com a roupa do corpo rumo a Cuiabá. O destino desconhecido foi apenas uma forma de procurar esperança para recomeçar, mesmo com a promessa de morte por parte do companheiro. “Ele disse que se eu o denunciasse e fosse preso, depois que saísse da prisão iria me matar e matar todos os meus filhos, inclusive os dele”.
Na Capital, Josefa e os cinco filhos não tinham para onde ir. Ela foi à Delegacia Especializada da Mulher registrar boletim de ocorrência e de lá a encaminharam para a Casa de Amparo, mantida pela Secretaria Municipal de Assistência Social e Desenvolvimento Humano. O local acolhe mulheres e filhos vítimas de violência doméstica, dando apoio e suporte. Segundo a assistente social da Casa, Márcia Santos, as mulheres chegam ao local com o estado emocional totalmente abalado e autoestima baixa. O trabalho é para que elas e os filhos possam sair do círculo da violência e sejam inseridos no mercado de trabalho e estudo, no caso dos filhos. Também são oferecidas palestras educativas na área de saúde, gêneros e violência.
“A maioria dos casos são de violência física e abusos sexuais envolvendo companheiros, ex-companheiros e padrastos. Grande parte não tem trabalho ou estudo e por isso a Casa oferece artesanato para que elas possam descobrir aptidões, sair daqui e não depender do agressor”.
Há quase três meses morando na Casa de Amparo com os filhos, Josefa diz que agora consegue dormir melhor e tem esperança de poder viver uma vida tranquila com seus filhos. “Quero trabalhar, ganhar meu dinheiro e seguir minha vida”, fala. Karine, por sua vez, comenta que nas horas vagas gosta de escrever histórias e também revelou o que pretende para seu futuro. “Hoje estou muito feliz porque não estou mais naquela situação. Aqui é um lugar melhor, estou estudando porque quero mudar as leis do Brasil, fazer elas mais rigorosas (sic). Todo mundo tem coração e todo mundo deve ser respeitado. A gente não deve maltratar as pessoas porque a gente deve se colocar no lugar delas”.
Histórias como esta têm crescido nos registros das Delegacias Especializadas da Mulher, porém, muitas vítimas ainda têm medo de denunciar, por diversos fatores, seja por medo, vergonha ou até desconhecimento. A Lei 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha, completa 11 anos hoje e, infelizmente, mesmo depois de sua criação, muitas mulheres continuam a sofrer diversos tipos de abuso nos relacionamentos.
A violência física é a mais aparente, porém existem vários outros tipos. A defensora pública do Núcleo de Defesa da Mulher da Instituição, Rosana Leite Antunes de Barros, assinala que os crimes mais comuns em Mato Grosso são relacionados ao ciúme excessivo. “Temos ameaça, que é o que mais acontece no âmbito familiar. O lar se torna o lugar que elas menos gostariam de estar, justamente por estarem envolvidas num relacionamento onde ão têm liberdade de ir e vir, de estar, de permanecer”.
A defensora diz que muitas vezes a agressão ocorre por meio de palavras. “As palavras entranham no psicológico da mulher de forma que ela pode adquirir doenças psicossomáticas. Aqui no Estado há muitos casos de depressão em razão dos relacionamentos abusivos e das ameaças que elas passam dentro dos lares e de não ter como deixar aquele relacionamento por vários fatores, como dependência emocional, financeira e o temor de ser morta”.
De acordo com Rosana, são três as principais causas do feminicídio (assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher) dentro do âmbito doméstico: inconformismo – segundo os homens, eles matam suas parceiras por estarem inconformados com o término do relacionamento; traição – eles justificam que mulheres que traem merecem morrer; e quebra da expectativa. De acordo com o agressor, isso ocorre quando a mulher não está cumprindo com a expectativa do que eles esperam. Por mais que elas trabalhem fora, ele entende que ao chegar em casa a mesa deve estar posta e o lar limpo, sem o compartilhamento de tarefas.
Além disso, segundo a defensora pública, há humilhação relacionada ao corpo físico e pressão psicológica. Muitas deixam de trabalhar fora para ficar em casa cuidando dos filhos. Muitas são agredidas com palavras, ficam deprimidas, com o psicológico abalado.
Em comparação a 2015, no ano de 2016 houve nove mil casos a mais relacionados à Lei Maria da Penha. “Precisamos que a Lei seja efetiva e eficaz, precisamos que a mulher confie que essa lei será aplicada. Para isso, precisamos saber o que se passa dentro da casa dela”.
Tipos de abusos – A violência doméstica vai muito além da agressão física ou do estupro. A Lei Maria da Penha classifica os tipos de abuso contra a mulher nas seguintes categorias: violência financeira, psicológica, patrimonial, moral, física e sexual.
Veja quais são as agressões consideradas violência doméstica no Brasil: humilhar, xingar e diminuir a autoestima; expor a vida íntima; atirar objetos, sacudir e apertar os braços; tirar a liberdade de crença; controlar e oprimir a mulher; forçar atos sexuais desconfortáveis; impedir a mulher de prevenir a gravidez ou obrigá-la a abortar; controlar o dinheiro ou reter documentos; quebrar objetos da companheira, entre outros.
O Ligue 180 é um canal direto para fazer denúncias sobre relacionamento abusivo e também para orientações sobre direitos e serviços públicos voltados para mulheres em todo o Brasil. A ligação é gratuita. Criado em 2005 pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, esta é uma opção de acesso a serviços que integram a rede nacional de enfrentamento à violência contra a mulher sob amparo da Lei Maria da Penha.
Outro canal criado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres são as redes sociais (Facebook, YouTube e Twitter). A Campanha #NãoéAmorQuando é uma ação que vai mostrar gestos e comportamentos que indicam que a relação caminha para a violência.
A TV.JUS também abordou esse tema. Assista AQUI:
*Nomes fictícios para preservar a identidade de mãe e filha