Um sentimento que transcende qualquer dor física ou emocional, que entranha no íntimo e que deixa marcas permanentes nas mulheres vítimas de violência doméstica. O misto de sensações acompanha diariamente a vida dessas pessoas. Dor, insegurança, medo e vergonha. E ao contrário do que muitos pensam, os diversos tipos de abusos ocorrem em todas as classes, sem distinção de cor, raça ou credo. Do outro lado está o agressor, aquele que, na maioria das vezes, pensa que tem o poder sobre sua companheira, um sentimento de propriedade, no sentido literal da palavra.
“Para mim o casamento era pra ser a vida toda”. Essa frase é de Gisele*, advogada criminal que há um ano está separada do marido. Foram oito anos de união no civil e religioso e quatro meses depois começaram as brigas, tapas e empurrões. Com o passar dos anos a situação foi piorando.
“De 2013 a 2015 ficamos sem brigar e esse período foi muito bom. Depois compramos uma propriedade e nos mudamos. Como lá era afastado acho que ele se sentiu melhor para fazer as agressões porque não tinha para onde eu ir atrás de socorro. Em abril de 2016 ele começou a bater, chutar, puxar cabelo e numa dessas vezes fui parar no Pronto Socorro de Várzea Grande, no dia 10 de abril. Lá eu fiquei em observação por umas quatro horas e voltei para casa. Ele pediu para o nosso filho falar pra eu perdoá-lo, que ele não ia mais fazer aquilo, que seria um bom marido e como sempre, perdoei”.
Gisele conta que era a provedora financeira da família e que o ex-marido sempre foi agressivo, tanto em casa quanto fora. “Ele nunca bebeu, mas é uma pessoa que não aceita um não, tem que fazer sempre tudo o que ele quer, então as brigas foram sendo constantes. Várias vezes ele dizia que eu estava traindo ele para justificar as agressões”, disse ao relatar que amava muito o ex-companheiro e por isso acreditava que ele ia mudar. A dependência psicológica, segundo ela, era muito grande.
Depois de todo esse tempo sendo humilhada e espancada, o basta veio com a violência sexual. Foram três dias seguidos de agressões duramente físicas e sexuais, que lhe renderam sequelas como descolamento de retina, fratura no rosto, cinco costelas quebradas e várias outras lesões pelo corpo. Nesse mesmo dia, depois de um descuido do marido, ela conseguiu fugir de casa com o filho, registrou boletim de ocorrência e fez exames no Instituto Médico Legal (IML).
“De todas as violências para a mulher a pior é a sexual, que ela não aceita e que ela não consegue apagar. Não existe perdão para isso e foi o que fez com que eu fugisse da casa. Registrei b.o., o delegado deu entrada na medida protetiva e daí pra frente começou o processo. Então ele começou mandar mensagens e nunca respeitou a medida protetiva. Nas mensagens, primeiro ele dizia que me amava, que queria voltar. Eu não respondia. Depois usava as mensagens para me xingar e agredir”.
O agressor chegou a ameaçar Gisele dentro do Fórum de Várzea Grande, descumprindo medida protetiva. Ele precisou ser contido por policiais militares e hoje está com mandado de prisão expedido, mas não foi localizado.
Atualmente Gisele e o filho fazem tratamento com psicólogo, ela toma remédio para conseguir dormir e quando sai com o filho, contrata seguranças. Diz que só quer viver em paz. “Agora tenho um filho para criar sozinha, estou focada no trabalho. Nunca achei que isso fosse acontecer comigo, uma advogada criminal. Acompanho tantos casos de violência doméstica e hoje espero que ele pague pelo que ele fez. Eu era esposa e mãe do filho dele, uma pessoa que sempre o ajudou muito. Se fez isso comigo pode fazer outras vítimas”.
Para as mulheres que estão passando pela mesma situação, a advogada deixa uma mensagem de estímulo, já que muitas vezes há o receio e o medo de denunciar o agressor. “Não se acovardem como eu me acovardei. Deixei passar quase nove anos para poder tomar uma decisão que se eu tivesse tomado no início teria evitado todo esse transtorno que foram causados agora, justamente por eu ter ficado quieta, por não ter procurado ajuda, a justiça. Não tenham medo. A gente fica receosa porque eles sempre ameaçam a gente, mas temos que ter mais amor próprio, coisa que eu não tive. Pensem em vocês, pensem nos filhos de vocês”.
É necessário romper o mito de que a violência doméstica está presente apenas nas classes mais baixas e por isso o contexto deve ser trabalhado como um todo em sociedade. Segundo alguns estudiosos de psicologia, o principal ponto muitas vezes está relacionado à educação, à concepção de que o homem é o chefe da família.
Possíveis causas e tratamentos – A psicóloga Cleonice da Silva Sant’Ana, da Divisão Psicossocial do Fórum de Cuiabá explica que muitas mulheres não conseguem sair do ciclo de violência porque muitos casos estão relacionados a dependência psicológica, financeira e pela pressão que o parceiro faz, principalmente quando se tem filhos.
No caso da advogada criminal a questão é o contrário. Ela sustentava a família e nessa situação, a psicóloga avalia que no início, o principal motivo para ‘aceitar’ as agressões é o amor, a paixão. “Ela gosta do outro mais do que dela mesma e quando chega num patamar máximo de violência, de agressão física, por mais que ela queira, ela não consegue sair. O parceiro vai propondo mudanças, ela vai acreditando e tendo esperança, até o ponto de chegar numa delegacia, aí ela tenta reverter essa situação, mas com muito sofrimento. É a questão emocional que prende ela nessa situação”.
De acordo com a psicóloga, acontecimentos como este estão relacionados a distúrbios ou à própria personalidade, já que o agressor em questão não fazia uso de álcool ou drogas. Para ele, a mulher é como se fosse propriedade. Em alguns casos ela é impedida de trabalhar fora, não pode estudar ou até não ir à casa da própria família, porque ele acredita que ela vai fazer algo contra ele e que vão fazer a cabeça dela. Há também distúrbios relacionados ao prazer que o homem sente ao ver o outro sofrer. “Cada caso é um caso. É uma questão muito individual e que precisa de ajuda. Se não deu certo com essa parceira não vai dar certo com ninguém porque ele precisa se tratar”.
Em muitos casos é necessário fazer tratamento associado, com psicólogo e psiquiatra, tanto para a mulher quanto para o homem e, dependendo do quadro, é necessário o uso de medicamento. “Na psicoterapia a pessoa começa a ter tomada de consciência, há uma evolução ao ponto de pelo menos viver em contato com outra pessoa de forma prazerosa e não promovendo sofrimento no outro. Pode ser que ele mude, mas vai depender do quadro e de como ele vai dar prosseguimento a esse tratamento. Depende muito mais do sujeito que está em terapia do que o profissional que está atendendo ele”.
Fórum de Cuiabá – A Divisão Psicossocial do Fórum de Cuiabá tem um quadro de profissionais (psicólogas e assistentes sociais) que recebe mulheres vítimas de violência doméstica, os filhos e agressores, encaminhados pelos juízes das Varas correspondentes. O papel da equipe é fazer o encaminhamento necessário para tratamento psicológico ou psiquiátrico.
“Quando recebemos os processos temos que fazer um estudo psicossocial das partes envolvidas, vítima, agressor e filhos. A partir daí a gente vê a necessidade ou não de encaminhamento para psicoterapia, consulta com psiquiatra ou psicólogo. Orientamos, conversamos muito no sentido de que a mulher precisa se empoderar e romper esse ciclo da violência doméstica. Só ela tem esse poder”.
Cleonice reitera que a violência doméstica não escolhe religião, classe social, credo, cor ou raça, sendo abrangente em todos os níveis da sociedade. Prova disso são os atendimentos realizados pela equipe no Fórum da capital. “Já atendemos todos os tipos de classe social, desde gari, médicas, enfermeiras, das pessoas mais esclarecidas até a classe mais baixa. Muitas vezes as de classe mais alta têm vergonha de se expor e denunciar, por isso às vezes as pessoas pensam que os casos de agressões estão relacionados somente às pessoas mais pobres”.
A Lei nº 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha completou 11 anos de vigência no dia 7 de agosto e garante a proteção das mulheres contra qualquer tipo de violência doméstica, seja física, psicológica, patrimonial ou moral.
Para fazer denúncias de violência doméstica, disque 180. Este número também é voltado para orientações sobre direitos e serviços públicos para mulheres em todo o Brasil. A ligação é gratuita.
Outro canal criado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres são as redes sociais (Facebook, YouTube e Twitter). A Campanha #NãoéAmorQuando é uma ação que vai mostrar gestos e comportamentos que indicam que a relação caminha para a violência.
*Nome fictício para preservar a identidade
A TV. JUS também abordou o tema. Assista o vídeo:
Fonte: TJMT