Recuperação judicial e impactos econômicos em tempos de COVID-19
Por Max Magno Ferreira Mendes
Ainda há tempo de buscar sentido e adotar estratégias seguras.
Estamos vivendo em um Estado de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em face das infecções ocasionadas pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2). Este é o nosso ponto de partida: estamos sendo impactados socialmente pela preservação do direito constitucional à saúde. (art. 196 CF). Isto é inquestionável. O impacto direto evidencia-se pela restrição à circulação de pessoas (art. 5º, XV CF) e ao livre exercício de atividade econômica (art. 170 CF).
As restrições à circulação de pessoas (consumidores em casa e agentes econômicos com limitações para concluir negócios) e ao livre exercício de atividade econômica (atividades empresariais mitigadas) estão relacionadas diretamente com a manutenção da ordem econômica do país. As consequências práticas de um eventual desequilíbrio da ordem econômica nacional se assemelham às mazelas sofridas com o colapso financeiro de 1929 e à crise econômico financeira de 2008, com os créditos subprime, guardadas as suas devidas proporções. A partir de 1873 com a institucionalização do capitalismo liberal, todas as vezes em que a circulação de riqueza e a realocação de recursos foram prejudicados sem que existissem controles governamentais preventivos e reparadores da economia, o setor produtivo padeceu e com ele padeceu todo o resto da sociedade. Neste comparativo, percebe-se que já se tem a desaceleração da economia como um todo e a constatação da paralização de alguns setores da cadeia produtiva nacional (ex: comércio).
A presunção de malefícios econômicos na cadeia produtiva nacional é tão factível que deve ter a atenção de todos os agentes econômicos e das autoridades públicas responsáveis pelo desenvolvimento econômico nacional. Aqui é importante evidenciar que a política econômica no Brasil é arregimentada pelo “Estado” e impulsionada pelos diversos agentes econômicos espalhados por todos os cantos deste país continental. Deste modo, as consequências deste impacto econômico são problemas de todos nós. Passado o susto, poucos conseguem defender que a solução seja o retorno imediato da circulação de pessoas e das atividades empresariais. Se esta solução não é possível, por agredir frontalmente as orientações preconizadas pelas autoridades em saúde pública, precisamos começar a tratar de hipóteses para que o hipossuficiente enfrente o período de isolamento horizontal e, principalmente, de hipóteses que possam resguardar o reerguimento da economia nacional após o lockdown. Neste sentido, teríamos duas frontes a serem trabalhadas, sendo que a primeira está relacionada com a preservação das condições dignas de vidas dos agentes econômicos vulneráveis (art. 1º, III CF), no curso do isolamento, e a segunda relacionada com a preservação da atividade empresarial (art. 170 CF – ciclo produtivo).
Este artigo tem a pretensão de suscitar discussões acerca da segunda fronte, ou seja, tratar das relações obrigacionais no contexto empresarial. Em primeiro lugar, espera-se a implantação efetiva de políticas públicas que possam subsidiar o setor produtivo com o propósito constitucional de manter os já baixos índices de crescimento econômico nacional. Em segundo momento, deve haver a conscientização social de que as eventuais consequências financeiras de alguns agentes econômicos não são problemas individuais e as soluções devem ser tratadas com os parâmetros da boa-fé objetiva (art. 422 CC). A tônica das relações obrigacionais deve, portanto, estar atrelada à ética, à lealdade e à cooperação, alinhada ao princípio de integridade. Muitos já discutem acerca dos critérios jurídicos de excludentes de responsabilidades (força maior – art. 393 CC) dos compromissos assumidos individualmente, mas poucos discutem sobre as hipóteses de solucionamento coletivo da situação posta. O problema social não é circunscrito a um descumprimento contratual, mas sim aos efeitos econômicos catastróficos do eventual descumprimento contratual em massa. Os critérios jurídicos das excludentes de responsabilidades só serão efetivos, portanto, caso sejam compostos por métodos de solucionamento coletivos de conflitos, pois é razoável vislumbrar que o judiciário e as câmaras de arbitragem não serão capazes de apaziguar todos as intenções de revisões e/ou rescisões contratuais individuais ao tempo que o mercado exige.
O mundo ideal é aquele em que ninguém deveria estar pensando em lucrar com esta pandemia e que todos poderiam estar harmoniosamente mitigando os mútuos prejuízos. No entanto, para antever eventuais idiossincrasias do mercado deve-se pensar em métodos coletivos de solucionamento de interesses/conflitos. Os métodos de solucionamento de conflitos coletivos, como pode ser o caso do processo de recuperação judicial, pode ser um caminho menos espinhoso para que possamos enfrentar as dificuldades que se avizinham. Um grande flagelo na gestão da crise empresarial é não adotar medidas de solucionamento ao tempo oportuno, e agora, tem-se uma grande oportunidade para tratar sobre um comportamento cooperativo entre os credores em um momento que ainda é possível manter a atividade produtiva do devedor. Temos que alinhar os conceitos econômicos e jurídicos de crise econômico-financeira para difundir no meio empresarial que os idôneos relatórios gerenciais de fluxo de caixa e suas projeções podem ensejar a caracterização de uma crise econômico-financeira, mesmo que não exista falta de liquidez atual.
O conceito de crise econômico-financeira não está, necessariamente, ligado à inadimplência atual, ao fato que as projeções contábeis pautadas nos cenários econômicos podem evidenciar o colapso financeiro em data futura. As projeções contábeis podem demonstrar que a atividade empresarial já está em risco em face da futura e iminente dificuldade da empresa em cumprir suas obrigações, mesmo que temporariamente, com suas dívidas vincendas. Basta lembrarmos que a paralização dos caminhoneiros em maio de 2018, posteriormente, foi tida como um dos fatores da regressão da expectativa de crescimento da economia e da diminuição do PIB nacional. Muitos setores produtivos da economia só perceberam tardiamente as consequências pela paralização momentânea por aqueles onze dias. Não existe imposição legal para se esperar que os efeitos da crise empresarial sejam instalados. Não se deve esperar até o pior momento da crise econômico-financeira para se idealizar um plano capaz de equalizar os interesses dos credores com a manutenção da atividade produtiva do devedor. Quanto mais tardio, menos viabilidade econômica terá o plano de recuperação judicial, justamente porque deve ser idealizado a partir da continuidade da atividade empresarial.
A atividade empresarial deve estar, pois, em funcionamento e com perspectivas factíveis de superação da crise para que se possa caracterizar a viabilidade econômica do plano de recuperação. O ideal é que a manutenção ou o reestímulo da circulação de riqueza aconteça através do trato individual pautado na boa-fé objetiva, mas não devemos desconsiderar a implantação de políticas públicas que favoreçam a realocação útil de recursos financeiros e os métodos judiciais de solucionamento coletivos como a recuperação judicial, com este mesmo objetivo. Já deveríamos ter aprendido com as experiências vividas com as diversas crises econômico-financeira que assolaram o mundo. Ainda há tempo de buscar sentido e adotar estratégias seguras.
Max Magno Ferreira Mendes é sócio do Escritório Ferreira Mendes Advogados. Possui mestrando em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Curso de Extensão em Recuperação Judicial (COGEAE – PUC/SP). MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ, em curso. Especialista em Direito Agroambiental pela Escola do Ministério Público/MT. Graduado em Direito pela Universidade de Cuiabá/MT. Advogado.
- Publicidade -