Quando o superfaturamento é a melhor solução
Por Guilherme Carvalho e Samer Agi
“Breve é a loucura, longo o arrependimento”, dizia o médico, filósofo e historiador
alemão Friedrich Schiller. Embora nem tudo que façamos seja loucura, porquanto a única solução, certo é que o arrependimento ousa cobrar sua conta. No contexto das medidas de contratação pública adotadas para o combate ao coronavírus, a Lei nº 13.979/20 quase sempre nos remete a uma loucura, que pode nos ocasionar maiores ou menores arrependimentos.
Queremos dizer que, nas contratações públicas que decorrem do combate à pandemia, o
arrependimento será dado como certo, cabendo ao gestor (tomador de decisões) decidir sobre a forma de se arrepender, é dizer, se deseja se submeter a uma ação criminal ou “apenas” a
uma possível ação civil pública por atos de improbidade administrativa.
Vamos à prática. O § 3º do artigo 4º da Lei nº 13.979/20 preceitua, dentre tantas
excecionalidades trazidas por esta lei, que “excepcionalmente, será possível a
contratação de fornecedora de bens, serviços e insumos de empresas que estejam com
inidoneidade declarada ou com o direito de participar de licitação ou contratar com o
Poder Público suspenso, quando se tratar, comprovadamente, de única fornecedora do
bem ou serviço a ser adquirido”.
Para o quanto interessa a este artigo, foquemos na contratação de empresa que estejam
com idoneidade declarada. Bem, o referido arigo não deixa qualquer margem de
dúvida de que a contratação com empresa inidônea é excepcional, ocorrendo quando
se tratar, comprovadamente, de única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.
Logo, havendo outra empresa apta a ser contratada, que não inidônea, deve prevalecer
a contratação com esta última.
É de se destacar que a Lei nº 8.666/93, em seu artigo 97, tipifica como crime a
celebração de contrato com empresa ou profissional declarado inidôneo, prevendo uma
pena de detenção de seis meses a dois anos e multa. Logo, a “Lei do
coronavírus” trouxe, ao que parece, uma excludente de ilicitude, desde que reste
comprovado ser a contratada a única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.
Ocorre que a Lei nº 13.979/20 não define padrões de fixação e interpretação quanto ao
critério territorial em que se pode considerar a contratada como “única”. Única onde:
União, estados, município? A par dessa pequena “peleja”, outros tormentos vêm à
cabeça do gestor quando da tomada da (breve) decisão.
Pensemos no seguinte exemplo: um município de Minas Gerais deseja adquirir
respiradores mecânicos para auxiliar no combate à pandemia. Suponhamos que este
município possua disponível o importe de um milhão de reais e que, no mesmo
município, exista uma única empresa, já declarada inidônea, que disponibilize à venda
(algo raro em tempos de pandemia) dez respiradores, pelo custo unitário de cem mil
reais cada um deles. Logo, numa matemática apressada, o município poderia adquirir
os dez respiradores.
Complementando — e problematizando — o exemplo acima, pensemos que o gestor,
quando da aquisição, tenha total conhecimento de que, no vizinho Estado de São
Paulo, há outra empresa, idônea, que também disponibilize respiradores à venda;
todavia, os vende não por menos de duzentos mil reais. Na prática, o Município
adquiriria apenas cinco respiradores, deixando parte da população desassistida.
Ocorre que, em ambas as situações, tudo indica que haverá responsabilização para o
gestor. Comprando da empresa inidônea, poderá responder pelo crime do artigo 97, da Lei nº 8.666/93. De outro lado, contratando com a empresa idônea, responderá por
possível superfaturamento, que, apesar de não ser crime (pode vir a ser na nova Lei de
Licitações), tende a desaguar em uma responsabilização por atos de improbidade
administrativa (artigo 10, VIII, da Lei nº 8.429/92, em especial).
Qualquer que seja a “breve loucura” do gestor público, numa tomada de decisão
invariavelmente urgente, haverá arrependimento, remanescendo apenas a dúvida de
“qual caminho eleger”. Pior, quer gestor tome um caminho, quer siga pelo outro, em
qualquer caso, a pecha de corrupto lhe aguarda. Em tempos sombrios, a condenação
social exige apenas um órgão acusador. Na dúvida, a aquisição com a empresa idônea,
que vende “superfaturado”, embora seja reprovável, não constituirá crime: o
arrependimento será menor. Friedrich Schiller nem sempre tem razão!
Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo e mestre em Direito e
Políticas Públicas. Ex-Procurador do Estado do Amapá e advogado do escritório
Guilherme Carvalho & Advogados Associados. Bacharel em Administração.
Samer Agi é juiz de direito substituto do TJ-DFT, professor, palestrante e autor de
vários livros jurídicos.
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