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quinta-feira, 12/12/2024

Proposta da nova Lei de Drogas combina descriminalização com mais repressão ao tráfico

FOTO: Divulgação/Internet
Entregue à Câmara dos Deputados em 7 de fevereiro, a proposta de reforma da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) reforça os mecanismos de punição contra o narcotráfico ao criar tipos penais mais específicos, com penas que variam de acordo com a gravidade da conduta – algumas maiores que as da lei atual.
Na elaboração do anteprojeto houve uma preocupação especial com o combate ao grande tráfico, ao seu financiamento e ao comércio internacional de drogas, e também com a redução da margem de subjetividade dos juízes na aplicação da lei.
Redigida por uma comissão de juristas encabeçada pelos ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Ribeiro Dantas e Rogerio Schietti Cruz, a proposta, por outro lado, tira do campo de ação da Justiça criminal as pessoas envolvidas com drogas em quantidade que caracterize uso pessoal – até dez doses, conforme a definição do texto apresentado à Câmara.
Anteprojeto da nova Lei de Drogas foca na repressão ao grande tráfico com critérios objetivos
Ribeiro Dantas – concentrar força na prisão de pequenos traficantes é mandar soldados para as facções.

Para o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Ribeiro Dantas, o foco no combate ao grande tráfico, ao seu financiamento e ao comércio internacional de drogas é um dos pontos mais importantes da proposta de atualização da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), consolidada por uma comissão de juristas.

Ribeiro Dantas presidiu a comissão criada pela Câmara dos Deputados em agosto de 2018 para propor alterações na lei. O ministro Rogerio Schietti Cruz foi o vice-presidente da comissão, e o desembargador federal Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), o relator. O anteprojeto foi entregue ao presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), no início deste mês.

Em vez de adotar a mesma pena para várias práticas relacionadas ao tráfico, como na lei atual, a proposta cria vários tipos penais mais específicos, com penas que variam conforme a gravidade da conduta. Assim, o anteprojeto também permite a punição mais severa para quem praticar condutas descritas em tipos diversos, mediante o concurso de crimes.

Além disso, a tipificação passa a prever penas maiores do que as atuais em situações como tráfico internacional e atividades de financiamento do tráfico, podendo chegar a 20 anos antes mesmo da incidência de causas de aumento.

As causas de aumento de pena foram estabelecidas de forma objetiva no anteprojeto, variando conforme a quantidade de droga apreendida. Sendo superiores a um milhão de doses, por exemplo, a pena pode ser aumentada em até dois terços, ao passo que, nas apreensões entre dez e cem doses, poderá ser reduzida da metade a dois terços.

Ao mesmo tempo em que agrava a repressão ao grande tráfico, o anteprojeto prevê a descriminalização do uso pessoal de drogas no limite de dez doses por usuário e aposta na política de redução de danos e de prevenção ao uso (leia na entrevista do ministro Rogerio Schietti Cruz).

Integrante da Quinta Turma do STJ, o ministro Ribeiro Dantas analisa na entrevista abaixo alguns pontos relacionados à parte repressiva da proposta, com destaque para a nova tipificação e a adoção de critérios objetivos para racionalizar o enfrentamento ao crime organizado.

O anteprojeto muda a redação do artigo 33, que define o crime de tráfico. Quais as principais alterações nesse ponto?
Ribeiro Dantas – A legislação atual estabelece um crime único para o tráfico de drogas. No anteprojeto, nós substituímos os 18 verbos desse artigo por 15 tipos criminais distintos. Criamos a figura do tráfico internacional, que é punido mais severamente do que na legislação atual. Outro crime com a pena muito alta é o financiamento do tráfico de drogas. É a pena mais alta de todas, de dez a 20 anos, e se o financiamento for para o tráfico internacional pode aumentar em mais um terço.
E outras condutas tiveram a pena reduzida, de acordo com a gravidade?
Ribeiro Dantas – Sim. Remeter, transportar, por exemplo, são condutas mais graves do que armazenar, que recebe uma pena menor. Outro exemplo de abrandamento da pena seria o transporte por meio de terceiros, o caso da “mula” do tráfico. O juiz poderá ainda deixar de aplicar a pena quando ficar comprovado que o agente sofreu grave coação.
Como foi tratada a questão das mulheres que tentam levar drogas para dentro de presídios?
Ribeiro Dantas – É outro caso destacado de coação, por isso a pena fica mais branda na proposta de atualização da lei. Muitas vezes, se não levarem as drogas, elas morrem. Nessas situações, elas estão desesperadas. Atualmente, a mulher é presa e alguns juízes dizem que a conduta é mais grave que o tráfico standard porque é o transporte de drogas para estabelecimento penitenciário. Ela fica presa e quem toma conta das crianças acaba sendo o tráfico. Por outro lado, no caso de tráfico dentro da prisão, aumentamos a pena pela gravidade da conduta. Ainda sobre a coação das mulheres, há uma preocupação nesse sentido. Os crimes relacionados a droga representam mais da metade do encarceramento das mulheres. O que se observa é que elas são quase sempre usadas pelo tráfico em situações de pressão ou coação.
A exposição de motivos do anteprojeto menciona a necessidade de critérios mais objetivos para a aplicação da lei. Poderia dar um exemplo da nova redação nesse sentido?
Ribeiro Dantas – As causas de aumento ou diminuição de pena são uma novidade porque trabalhamos com a quantidade da droga. Dependendo da quantidade, a pena pode ser aumentada de um sexto a um terço. E a pena pode ser aumentada em dois terços se o crime for praticado com violência, grave ameaça, se atingir adolescente, criança, qualquer pessoa que tenha capacidade suprimida. Outra situação é o tráfico com a participação de três ou mais pessoas. Temos o conceito de organização criminosa caracterizado, neste caso, com a quantidade superior a um milhão de doses da droga.
Em outros casos, a objetividade também pode significar a redução da pena?
Ribeiro Dantas – Sim, há casos de diminuição, como a quantidade entre cem e mil doses, ou entre dez e cem doses, por exemplo. A colaboração do réu para solucionar o caso, a questão da coação de mulheres, todos esses são fatores de diminuição da pena no texto proposto.
Diminuir o caráter de subjetividade da lei atual é um princípio norteador do texto apresentado?
Ribeiro Dantas – Esse foi o pensamento da comissão. Queremos diminuir a subjetividade da Lei de Drogas porque, atualmente, condutas idênticas, dependendo do juiz, podem ter penas muito diferentes.
De que forma a experiência como julgador auxiliou na elaboração do anteprojeto?
Ribeiro Dantas – Foi muito importante ter essa experiência e também poder contar com a experiência dos demais membros da comissão, já que ela contou com desembargadores, membros do Ministério Público, juízes, professores e outros especialistas. A comissão teve uma composição multifacetada e acesso a uma grande variedade de informações. Além disso, realizamos várias audiências. É importante registrar que o texto apresentado é apenas a primeira palavra. Cabe agora ao Congresso dar andamento à proposta. Nós demos uma contribuição em um tema complicado. Nas questões-chave, se você ouvir cem pessoas, é possível ter cem opiniões diferentes.
Houve uma mudança de foco na repressão, com ênfase no combate ao grande traficante. O que se pode esperar dessa política?
Ribeiro Dantas – É esse trabalho que efetivamente resolve. É o combate ao grande tráfico que pode “quebrar as pernas” do crime organizado, principalmente cortando as linhas de financiamento. Se ficarmos centrando a repressão no pequeno flagrante de esquina, pegamos o peixe pequeno e mandamos soldados para as facções do crime organizado.
Descriminalização de drogas para uso pessoal é aposta contra encarceramento desnecessário
Ministro Rogerio Schietti – “Se nós estivermos errados, o mundo todo também estará”
Uma das principais – e mais polêmicas – novidades do anteprojeto de reforma da Lei de Drogas apresentado à Câmara dos Deputados no início deste mês é a proposta de descriminalização da aquisição, posse, armazenamento, guarda, transporte ou compartilhamento de entorpecentes para uso pessoal, limitado à quantia de dez doses (a quantidade de cada dose por tipo de droga será definida pelo Poder Executivo).
Segundo o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogerio Schietti Cruz, vice-presidente da comissão de juristas que elaborou o anteprojeto, a descriminalização é uma tendência mundial e foi incluída no texto após discussão com especialistas e análise da experiência de vários países.
Ao mesmo tempo em que busca reforçar o combate ao grande tráfico de drogas e ao seu financiamento (leia na entrevista do ministro Ribeiro Dantas, presidente da comissão de juristas), o anteprojeto estabelece diretrizes para políticas públicas de prevenção ao uso de drogas e de redução de danos, para prevenção ao uso problemático de entorpecentes e também para tratamento de dependentes.
O ministro Rogerio Schietti comenta na entrevista abaixo alguns pontos da redação final do anteprojeto, com destaque para a proposta de descriminalização do uso pessoal. De acordo com o magistrado, que preside a Terceira Seção do STJ (especializada em matérias de direito penal), a legislação atual contribui para que o país tenha um alto grau de encarceramento, o que acaba servindo de estímulo para o crescimento das organizações criminosas.
“Cerca de 30% dos homens condenados cumprem pena por crimes ligados ao tráfico, e entre as mulheres esse percentual chega a 70%. As facções se alimentam da mão de obra que entra nos presídios por crimes pequenos”, diz o ministro.
Uma das preocupações do anteprojeto é estabelecer diferença entre dependência e uso problemático de drogas. Essa distinção é nova?
Rogerio Schietti – Todo nosso trabalho é fruto de leitura e consulta a pessoas que nos trouxeram o que há de mais atual no mundo sobre o tema. A questão das drogas ilícitas envolve uma miríade de classificações. Existe o usuário eventual, esporádico, que não necessariamente se torna dependente. Há os dependentes e há aqueles que, mesmo não sendo dependentes, acabam tendo problemas pessoais por causa do uso frequente: perdem o emprego, têm conflitos familiares, enfim, geram situações que lhes trazem problemas e por isso são definidos como usuários problemáticos. Tentamos dar respostas correspondentes a cada uma das situações, mantendo ao mesmo tempo um tratamento rigoroso ao tráfico.
Foi nesse contexto que surgiu a proposta de descriminalização?
Rogerio Schietti – Sim, para a pessoa que faça uso até um limite de dez doses, propomos sua retirada do sistema criminal, pois é um problema individual e, eventualmente, de saúde pública. Estamos respeitando a autodeterminação do indivíduo. Se o uso causar problemas, pode haver a intervenção do Estado, mas o indivíduo somente será alcançado pelas garras da Justiça quando se envolver com o tráfico de drogas. A tendência mundial é essa. Se nós estivermos errados, o mundo todo também estará.
Quais foram os modelos internacionais observados pela comissão para a definição da proposta da descriminalização?
Rogerio Schietti – Foram analisados vários modelos no mundo todo, desde os que não punem na esfera criminal e usam apenas sanções cíveis, como a multa, até os modelos mais draconianos inspirados na iniciativa de “guerra às drogas”, em que uma dose para consumo próprio pode gerar a aplicação da pena de morte. Há modelos que descriminalizam e legalizam, como o do Uruguai, que criou uma autarquia para regular esse novo mercado.
Algum desses modelos internacionais foi mais inspirador?
Rogério Schietti – Todos os estudiosos do assunto e a literatura especializada colocam Portugal como o modelo que mais deu certo em relação a uma nova política relacionada a drogas ilícitas. Reconhecemos que o Brasil não tem condições de dar o mesmo passo, por isso demos um passo tímido com a descriminalização do uso limitado. É o que achamos possível para nossa realidade. Há quem defenda a legalização do comércio, mas há uma deficiência do Estado em fornecer e controlar serviços, então não poderíamos deixar o Estado administrar isso. Simplesmente não vamos mais criminalizar a conduta das pessoas que fazem uso dessas substâncias sem consequências maiores a terceiros. A proposta é não mais punir criminalmente usuários quando flagrados na posse de até dez doses.
Qual o parâmetro adotado para a definição desse limite de dez doses?
Rogerio Schietti – É muito difícil estabelecer o parâmetro. Em alguns países o limite é cem gramas de cannabis; em outros, 40. Outros fixam limites por dias de consumo. É importante destacar que estabelecemos uma presunção que pode ser desconsiderada pela realidade dos fatos. O juiz pode avaliar se é realmente caso de usuário ou se é um traficante com pequena quantidade. Futuramente, esse quantitativo deverá ser definido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Como essa regulamentação pode demorar, o anteprojeto estabeleceu um limite provisório.
No Brasil, a questão das drogas leva ao encarceramento em massa. Isso também pesou na hora de formular as propostas?
Rogerio Schietti – Também. Nós observamos que na vigência da lei atual o grau de encarceramento em geral aumentou muito, e os crimes relacionados ao tráfico tiveram um aumento muito maior. Atualmente, cerca de 30% dos homens condenados cumprem pena por crimes ligados ao tráfico, e entre as mulheres esse percentual chega a 70%. Pior que a superlotação do sistema penitenciário são as condições de cumprimento de pena. As facções se alimentam da mão de obra que entra nos presídios por crimes pequenos. Esses pequenos flagrantes não afetam o comércio de drogas, pois quem é preso logo é substituído na função. São pessoas que poderiam ter outra resposta punitiva do Estado e, no anteprojeto, procuramos tratar cada situação de tráfico com a respectiva gravidade, dosando as penas de modo proporcional.
Há também uma preocupação com a política de redução de danos. De que forma esse conceito está presente no anteprojeto?
Rogerio Schietti – No texto apresentado, há uma afirmação da política de redução de danos para as hipóteses de intervenção social do Estado para que, na medida do possível, uma eventual dependência seja vencida ou, ao menos, controlada, conforme cada caso.
É possível prever os efeitos que a descriminalização pode ter sobre o consumo de drogas e a criminalidade em geral?
Rogerio Schietti – Este é um tema sobre o qual estamos sem condições de fazer prognósticos seguros. São vários fatores que levam uma sociedade a conviver com drogas e crimes. É possível que haja no primeiro momento um aumento no consumo, pela eliminação de uma resposta muito drástica que possa inibi-lo, porém o que importa é que esses usuários não mais serão tratados como criminosos. Deixamos muito claro na apresentação do anteprojeto que é preciso uma política forte do Estado em relação às drogas da mesma forma como foi feito com o cigarro. O consumo do tabaco diminuiu drasticamente nos últimos anos. O número de fumantes no Brasil caiu cerca de 36% nos últimos dez anos porque há uma campanha muito forte que alerta para os riscos desse produto. Nenhum de nós quer um filho ou parente como usuário de drogas, e por isso eles devem ser alertados dos riscos.

Fonte: STJ


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