A trajetória dos Partidos Políticos aponta a conquista de tais agremiações no espaço democrático trazido pela evolução das constituições recentes, retrato da redemocratização em países vitimados pelo totalitarismo.[i]
A história recente aponta o elemento evolucionista dos partidos políticos, como ferramenta das práticas sociais e democráticas, viabilizando às figuras partidárias, um espaço constitucional de relevo, tornando-as talvez, um dos principais elementos da soberania nacional, em razão do elemento representativo marcado pela dinâmica criada com a sociedade.
Porém, se por um lado o espaço constitucional conquistado alicerçou constitucionalmente essas agremiações políticas como ferramenta de democracia, por outro, criou-se uma “blindagem” que os tornaram até pouco tempo figuras intocadas.
Não é novidade, sobretudo em dias atuais, que o crescimento das bandeiras partidárias, arrastaram consigo ao longo do tempo a herança patológica da corrupção institucionalizada.
Porém, com uma Constituição Federal prestes a completar 30 (trinta) anos de existência, a democracia brasileira busca sair de sua fase preliminar, para descortinar a necessidade madura de revisão de valores e princípios atrelados à algumas instituições, exigindo-se, a exemplo, o enfrentamento da finalidade dos partidos políticos e o seu lugar num novo contexto democrático, e a partir dai, a medida de sua real necessidade e integração social representativa, bem como limites e responsabilidades em sua atuação.
Esse enfrentamento necessitará ao nosso ver, analisar a natureza jurídica dessas agremiações sob três enfoques básicos, que apesar de não ser objeto aqui tratado, ainda assim, traz um relevo sobre o tema, dividindo-se em três correntes que divergem entre si e que ora considera essas figuras como associações de direito privado; ora como órgãos públicos; e por algumas vezes como associações de direito privado, porém, com qualidades de natureza pública dotadas de privilégios e deveres que as demais associações de natureza privada não possuem.
Nesse cenário, as politicas de Estado voltam cada vez mais o olhar na luta contra a corrupção, e chamam ao debate o desafio tentar analisar a extensão e aplicabilidade da Lei 12.846/2013 – Lei Anticorrupção, a tais figuras jurídicas.
Sem esgotamento do tema, alguns defenderão o argumento de que, por se tratar de norma punitiva o princípio da reserva legal imporia a interpretação restritiva do artigo 1º da Lei 12.846/2013, afastando sua aplicação, já que o texto não elencou expressamente as agremiações partidárias como destinatários da norma (v. art. 44 do Código Civil).[ii]
Entretanto, outra vertente de estudos merece ser ponderada, levando-se em conta que a intenção maior da referida lei, é o combate à corrupção contra a administração pública e aos demais princípios que regem a democracia, o que viabilizaria uma discussão mais ampla, afastando de plano uma interpretação simplista de inaplicabilidade por ausência de previsão expressa no §único do artigo 1º da lei mencionada.
Aliás, pensamento diverso conduziria ao esvaziamento do combate ao mal maior que era, nas palavras de Ulisses Guimaraes “o cupim da República”.
O exercício interpretativo merece mais alcance, na medida em que o §único do artigo 1º trata da aplicação da lei a “quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas..”.
Desta forma, nos parece que as complexas particularidades das agremiações partidárias, por si só não retiraria o caráter ilícito de atos praticados por seus representantes, sobretudo quando em evidente prejuízo social como se tem visto nos últimos 20 anos de república.
Essa linha de pensamento encontra amparo na ideia de que “a autonomia partidária não poderá realizar-se sem observância dos princípios básicos enunciados na Constituição, especialmente o respeito à soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana.”[iii]
Se olharmos de maneira mais objetiva, alguns valores principiológicos tão relevantes à Democracia, como igualdade, função social dos partidos políticos e dignidade da pessoa humana, elevam o alcance da Lei 12.846/2013 para responsabilizar os partidos políticos.
Sopesando o princípio da igualdade, verifica-se que, aqueles que defendem a exclusão dos partidos políticos do rol de eficácia da Lei Anticorrupção, sustentam como pertinência lógica, a estrita interpretação literal, justificando não ter a lei pretendido atingir tais figuras jurídicas, e se assim fosse, teria previsto expressamente.
Porém, essa visão literal de aplicação da Lei Anticorrupção, desmerece todo um contexto principio lógico e histórico de abrangência não apenas desta, mas de qualquer norma jurídica em dado tempo e sociedade.
Os avanços interpretativos que se acredita sejam necessários para trazer maior evidência ao tema, tem amparo na doutrina de referência, que afirma que o traço de diferenciação na aplicação de qualquer norma jurídica, deva ter adequação racional entre o elemento diferencial (daquele que se pretende excluir) e o regime dispensado pela norma legal, sendo certo que a “discriminação legal” para respeitar a isonomia, necessita dentre outros pontos, que exista uma correlação lógica entre os fatores de diferenciação e a distinção de regime jurídico em função deles, disposto pela norma jurídica e que, essa mesma correlação atenda aos interesses constitucionalmente protegidos, com mais valia ao bem público protegido constitucionalmente.[iv]
Em outras palavras, a exclusão de qualquer pessoa, seja física ou jurídica, do contexto de aplicação de uma determinada lei, precisa necessariamente passar pelo crivo de análise contextualizada e inserida dentro dos valores e princípios estabelecidos constitucionalmente.
Evidente, portanto que, a análise de aplicação das leis em geral, tendem ao caminho da interpretação conforme a constituição, que aliás, é tema corriqueiro na jurisprudência dos tribunais superiores.
Ainda que no campo teórico das discussões, parece perfeitamente crível a possibilidade de estudos de aplicação da Lei Anticorrupção aos partidos políticos, a partir da interpretação defensiva da eficácia direta dos direitos constitucionais, não limitando o interprete à rasa ideia de interpretação literal do texto da lei.
Assim, respeitados entendimentos diversos, até porque necessário o aprofundamento e debates, fato é que, a interpretação da referida lei, exigirá dos aplicadores e especialmente do poder judiciário um esforço interpretativo e sobretudo, um enfrentamento conforme a constituição, tanto para dizer acerca de sua eficácia em face das agremiações partidárias, quanto para especificar sua abrangência de aplicação à essas figuras jurídicas, já que não se pode desmerecer as particularidades e complexidades estruturais dos partidos, como por exemplo a individualidade dos Diretórios; a individualidade dos candidatos em época de campanha; a composição das fontes de receitas; as implicações de natureza civil em caso de responsabilização judicial, dentre outros aspectos, que necessitarão de adequação.
Marcelo Ambrósio Cintra, é advogado, especialista em Direito Administrativo com ênfase em Gestão Pública; pós-graduando em Direito Constitucional e Administrativo, Consultor em Compliance pela FGV, Presidente da Comissão de Anticorrupção e Conformidade do Instituto dos Advogados Matogrossenses.