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quinta-feira, 12/12/2024

Atrasar é possível: os contratos de terceirização com a Administração Pública e a alteridade patronal mitigada

Guilherme Carvalho[1]
Raphael Guimarães[2]

 

“Sincronia é a realidade sempre presente para aqueles que têm olhos para ver”, escrevia o psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica. A ausência de simultaneidade de ações é tão deletéria quanto a própria omissão, pois, no descompasso do tempo, mora o perigo da desorientação.
A Justiça do Trabalho sempre interpretou os riscos da atividade econômica como reflexo da máxima alteridade que pode ser atribuída ao empregador, ainda que, na relação contratual, exista um terceiro, que, forçosamente, possa impor um desacerto: o Estado, tal qual ocorre nos contratos de terceirização. Para o Judiciário trabalhista, pouco importa se o empregador recebeu em dia do tomador do serviço, a Administração, devendo sempre arcar com os custos e ônus da atividade econômica, independentemente do tempo de atraso relacionado ao contrato de prestação de serviços.
Ocorre que, descompassadamente à intepretação das Cortes Laborais do país, em suas mais incisivas jurisprudências, cujas ementas já apontam para a aplicação irrestrita do princípio da alteridade laboral nos contratos de terceirização firmados com a Administração Pública, a Lei nº 8.666/93, em seu art. 78, XV, acentua ser possível o contratado suspender o cumprimento de suas obrigações para com a Administração Pública quando o atraso é superior a 90 dias.
Para o quanto importa a este artigo, imaginemos um exemplo de um contrato de terceirização, cujo objeto contratual seja serviço de vigilância; em tais casos, os custos do empregador estão relacionados aos valores decorrentes da folha salarial e seus respectivos encargos. Logo, se a Administração atrasa por período superior a 90 dias, o contratado pode suspender o cumprimento de suas obrigações com ela firmadas. Todavia, em pleno desacerto à interpretação literal da legislação, a Justiça do Trabalho assim não entende, como salientamos anteriormente.
Embora não seja cordial o Judiciário não ser deferente ao Legislativo, o que se infere da análise da jurisprudência trabalhista nacional é justamente o caminho contrário ao que previu, acertadamente, o legislador. Quis a norma (art. 78, XV, da Lei nº 8.666/93) impor ao contratado o ônus de suportar atrasos por parte da Administração Pública em até 90 dias; logo, depois de 90 dias, as obrigações podem ser descumpridas, inclusive as obrigações trabalhistas, fato este que mitiga, por pura opção legislativa, o princípio da alteridade no contrato de trabalho.
O empregador até pode suportar os riscos da atividade econômica, dentre os quais se incluem os atrasos por parte do Poder Público. Entretanto, se estas inadimplências ultrapassarem o prazo de 90 dias, ao empregador não pode ser imposto o ônus de arcar com os custos que decorrem do mesmo contrato administrativo cuja inadimplência foi ocasionada pela Administração Pública.
Em abono à tese aqui defendida, foi aprovado, no último dia 07 de agosto de 2020, na I Jornada de Direito Administrativo, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF), a proposta de Enunciado nº 2892, que se converteu no Enunciado nº 6, com a seguinte redação: “o atraso, superior a 90 dias, dos pagamentos devidos pela Administração Pública autoriza o contratado a suspender o cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação, mesmo sem provimento jurisdicional[3]. Portanto, mesmo sem provimento jurisdicional, poderá o contratado suspender o cumprimento de suas obrigações, até que seja normalizada a situação, independentemente de haver ou não provimento jurisdicional; dentre tais obrigações, inclui-se o pagamento de salários e demais verbas trabalhistas.
Para além da situação aqui já narrada, em que a Justiça do Trabalho não relativiza o princípio da alteridade, atribuindo ao empregador todos os ônus decorrentes do contrato de trabalho, não é incomum os contratados com a Administração Pública sofrerem também multas do Ministério do Trabalho e Emprego, as quais decorrem dos atrasos no pagamento de salários. Na prática, o empregador (e contratado) é apenado duas vezes!
Passemos a um exemplo material: após multa aplicada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) à empregadora que atrasara os salários dos empregados por apenas 5 dias, nada obstante a inadimplência contratual contumaz de mais de 500 dias por parte da Administração Pública, foi proposta ação[4], questionando a validade do auto de infração lavrado pelo MTE. Mesmo com parecer favorável do Ministério Público do Trabalho em segunda instância, que entendeu pela incidência do “fato do príncipe”, o Tribunal Regional do Trabalho de Goiás manteve a sentença de primeiro grau, que condenava a empresa ao pagamento de multa em relevante valor. Em termos práticos, o empregador sofreu dupla sanção: atrasos por parte da Administração Pública contratante, bem assim multa do mesmo Poder Público, oriunda do Ministério do Trabalho e Emprego.
Todavia, contemplando o desiderato normativo (art. 78, XV, da Lei nº 8.666/93), parece que o Judiciário Trabalhista já caminha para um giro jurisprudencial quanto à matéria. Transitado em julgado o acórdão do Regional Trabalhista goiano acima mencionado, foi proposta Ação Rescisória[5], visando à rescisão e desconstituição do referido acórdão prolatado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região e, em sede de tutela provisória de urgência, à suspensão das cobranças da referida multa, já inscrita em Dívida Ativa Federal e objeto de Cumprimento de Sentença. Liminarmente, entendeu o Regional goiano por suspender o curso da referida execução, alegando, dentre tantos outros robustos fundamentos demonstrativos da desproporcionalidade na cobrança intentada pela União, a existência de “força maior”.
Não é proporcional o mesmo Poder Público apenar o empregador mais de uma vez, sobretudo quando os atrasos são significativamente superiores aos 90 dias previstos na lei. É preciso que a Justiça do Trabalho exerça a jurisdição sincronicamente ao que previu o legislador, mantendo hígida a função social da empresa e evitando um descompasso desorientado quanto às inadimplências.  Harmonicamente, a realidade presente aos olhos da Justiça do Trabalho deve ser a mesma realidade aos olhos da Administração Pública; do contrário, puro desafino!

[1] Guilherme Carvalho é Doutor em Direito Administrativo e Mestre em Direito e Políticas Públicas. Ex-Procurador do Estado do Amapá e advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados. Bacharel em Administração. guilherme@guilhermecarvalho.adv.br
[2] Raphael Guimarães é sócio do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho. raphaelguimaraes@guilhermecarvalho.adv.br
[3] Disponível em http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/10082020-I-Jornada-de-Direito-Administrativo-divulga-os-40-enunciados-aprovados.aspx. Acesso em 15 de agosto de 2020.
[4] Processo nº 0011549- 34.2017.5.18.0018.
[5] Processo nº 0010515-73.2020.5.18.0000
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