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quinta-feira, 21/11/2024

Homologação do acordo de delação como causa (i)legal de (pre)julgamento

advogados Valber Melo e Filipe Maia Broeto
advogados Valber Melo e Filipe Maia Broeto
Por Valber Melo e Filipe Maia Broeto
O instituto da colaboração premiada — “melhor” regulamentado pela Lei 12.850/2013 —, cada vez mais, se apresenta como campo fértil para a discussão. Isso porque, com o seu advento no sistema jurídico brasileiro, ocorreu uma forte mudança de paradigmas no processo penal pátrio e, com isso, abriram-se diversos questionamentos acerca de sua (in)constitucionalidade.
Deveras, ao passo em que a colaboração premiada — ou, como prefere alguns, delação premiada[1] — gera, para alguns, sentimento de profunda admiração, apresentando-se, hodiernamente, como instrumento imprescindível ao combate da criminalidade organizada, produz, noutros, verdadeira aversão, de modo tal que sua existência no arcabouço jurídico brasileiro, argumentam, não sustentaria por muito (mais) tempo, dada a incompatibilidade estrutural do instituto, que não restou superada quando de sua “importação” — forçada — do Direito “alienígena”.
Não são poucos, ressalte-se, os pontos de contato (ou será colisão?) que a doutrina brasileira elenca ao tratar da colaboração premiada. Entrementes, não obstante o amplo rol de polêmicas trazido a lume com a edição do prefalado diploma normativo, far-se-á, na presente oportunidade, uma análise direcionada a um ponto bastante específico da lei, o qual, a despeito da importância, tem recebido poucos olhares.
Analisar-se-ão, doravante, as (severas) implicações que tem o “simples” ato de o juiz, ainda na fase embrionária da persecução penal, homologar o acordo de colaboração premiada. O tema, mais complexo do que aparenta ser, foi devidamente aprofundado por um dos articulistas[2] quando da defesa de sua tese de doutorado, na Argentina, e continua a ser estuado, por ambos, tendo em vista tratar-se de temática não rara em suas searas de atuação.
Por guardar estrita pertinência temática, consigna-se que, em 19 de setembro de 2017, encampando a visão aqui defendida, o deputado federal Expedito Netto, de Rondônia, apresentou o PL 8.613/17, que visa justamente o “impedimento do juiz que homologar a colaboração premiada para processar e julgar a ação penal respectiva”[3].
Portanto, tem-se que o ponto nevrálgico da questão em comento reside, basicamente, no artigo 4º, parágrafos 7º e 8º, da Lei 12.850/13, que, ao tratar da homologação do acordo de colaboração premiada, assim dispõe:
§ 7º Realizado o acordo na forma do § 6º, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor.
§ 8º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto.
Veja-se que o referido dispositivo, à evidência, causa um imbróglio sem precedentes na sistemática processual penal atual, de vez que, ao passo que a Carta Cidadã de 1988 impõe um processo acusatório, com clara divisão de tarefas entre os sujeitos processuais, a norma infraconstitucional (Lei 12.850/13) transforma o magistrado num autêntico órgão de acusação — ainda que não queira —, dado o lugar em que é colocado.
Observe-se que o artigo 4º, parágrafo 7º, da Lei 12.850/13, deixa expresso que “o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade”.
Neste momento já se verifica um primeiro problema, porquanto, segundo preleciona Daniel Del Cid, “para o juiz aferir a regularidade do acordo estará estritamente vinculado aos incisos do art. 4º da lei que por igual estão vinculados à exigência legal de descrição da denúncia como proposta de modelo de sentença”[4].
Com precisão, em tom de crítica, questiona o autor:
“(…) se a lei obriga ao magistrado verificar a existência eficaz da identificação dos coautores e partícipes (quem?), a revelação da estrutura (como?), a prevenção das infrações penais decorrentes e a localização de eventual vítima (onde?) e a recuperação total ou parcial do produto ou proveito (por quê?), não há dúvidas de que estará fazendo, primeiramente, um juízo prévio de recebimento da denúncia imposto pela própria lei. E a lei esclarece, ainda, que o juiz poderá recusar a homologação da proposta que não atender aos requisitos legais, impondo, mais uma vez, que os termos do acordo contenham a descrição de todos os fatos e circunstâncias, nos mesmos moldes da inicial acusatória. É uma imposição legal!”[5].
De ver-se, deste modo, que, conquanto o legislador tenha estipulado a “audiência” de homologação para garantir a constitucionalidade, legalidade e voluntariedade do acordo de colaboração premiada, acabou por, inquestionavelmente, antecipar o juízo cognitivo do “magistrado homologador”, trazendo a formação da culpa, de forma totalmente equivocada, para antes mesmo do início processo, ou seja, num momento em que sequer a cognição a ser adjetivada (sumária ou exauriente)!
Assim se argumenta, na medida em que, para poder homologar o pacto, deve o magistrado verificar, primeiro, a inépcia (ou não) da exordial acusatória, em desrespeito ao artigo 395, I a III, do CPP. Se ele, por exemplo, homologa o negócio jurídico processual, como afirmar, depois, que a exordial da acusação não preenchia os requisitos do artigo 41, do CPP? “Encruzilhada jurídica”, a priori, sem saída.
Ocorre, todavia, que não é só esse o problema.
Percebe-se, também, que afora a imposição de recebimento automático da denúncia, quando da homologação do acordo de colaboração premiada, o disposto nos parágrafos 7º e 8º, do artigo 4º, da Lei 12.850/13, acaba por inviabilizar, consectariamente, as hipóteses de absolvição sumária, estipuladas no artigo 397 e incisos, do CPP.
A toda evidência, não se requer muito esforço para perceber que tal sistemática causa inegável — e incontornável — embaraço à atividade defensiva, haja vista o fato de que o julgador, ao homologar o acordo de colaboração premiada, compromete-se previamente — num indevido e invertido processo penal — a aceitar a incoativa ministerial, de vez que vinculado ao acordo de colaboração.
Não fosse isso o bastante, há de se destacar que o artigo 4º, parágrafo 8º, da Lei 12.850/13 prevê, ainda, a lamentável possibilidade de o juiz, caso entenda inadequados os temos do acordo de colaboração, “adequá-los ao caso concreto”. Ora, anunciado quadro evidencia, ao exigir uma postura tão ativa assim por parte do magistrado, um verdadeiro juízo de paranoia, totalmente violador o sistema acusatório, que requer, valendo-se das expressões usualmente empregadas por Aury Lopes Jr., a figura de um “juiz menos ator e mais espectador”[6].
Nessa ordem de ideias, ao dissertar sobre os juízos de paranoia, Aury Lopes Jr., citando Cordero, adverte que “se opera um primado (prevalência) das hipóteses sobre os fatos, porque o juiz que vai atrás da prova primeiro decide (definição da hipótese) e depois vai atrás dos fatos (prova) que justificam a decisão (que na verdade já foi tomada). O juiz, nesse cenário, passa a fazer quadros mentais paranoicos”[7].
Com efeito, na esteira o quanto asseverado linhas atrás, há, aqui, uma inarredável encruzilhada jurídica, absolutamente incompatível com o sistema processual delineado na Carta Política de 1988, tendo em vista que a lei:
“(…) num primeiro momento, retira do magistrado a possibilidade de rejeição da denúncia e aplicação da absolvição sumária (artigos 395, I a III, e 397, I a III), e, em outro momento, retira também a possibilidade de absolvição do(s) réu(s), nos termos do artigo 386, I a VII. E isso ocorre porque, ao homologar o acordo, o magistrado já faz um juízo preliminar da acusação que antecede a denúncia, exercendo um juízo de controle da acusação. Se os requisitos legais do acordo são os mesmos requisitos obrigatórios da denúncia e o próprio magistrado exerce um poder de controle na homologação desse acordo, a lei obriga o magistrado a receber a denúncia ou, sob outro ponto de vista, ao menos, impede que o magistrado rejeite a denúncia pela ausência de algum dos requisitos que ele mesmo já homologou como satisfeitos. Como o juiz irá rejeitar a denúncia, por exemplo, por inépcia se a descrição dos fatos e circunstâncias são pressupostos obrigatórios para a homologação do acordo? Isso acontece também na análise da justa causa ou, ainda pior, em caso de absolvição sumária. Como o juiz irá rejeitar a denúncia e absolver sumariamente o(s) réu(s) dizendo que “o fato narrado não constitui crime”, sendo que na homologação do acordo ele próprio já aceitou os fatos narrados como descrição típica do ilícito?”[8].
De notar-se, assim, que a própria lei coloca o julgador em um quadro mental paranoico, porquanto, nas palavras de Jacinto de Miranda Coutinho, trazidas por Aury Lopes Jr., abre “ao juiz a possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probatório suficiente para confirmar sua versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade de crença no imaginário, ao qual toma como verdadeiro”[9].
Noutras palavras, tem-se, em afinação às lições de Del Cid, que “a lei cria um verdadeiro quadro de esquizofrenia probatória judicial, pois o juiz está psicologicamente condicionado a não apreciar bem as teses opostas e ratificar o conteúdo da homologação, mesmo porque a própria lei estabelece que a sentença apreciará os termos do acordo homologado e sua eficácia, privando delator e delatados de garantias básicas do devido processo legal, retirando de uma só vez a imparcialidade objetiva do julgador e o contraditório entre as partes”[10].
É, portanto, esse condicionamento subjetivo do magistrado à ratificação dos termos do acordo de colaboração premiada que gera inegavelmente um (pré-)juízo cognitivo, o qual prejudica tanto o delator que, às vezes, recebe tão somente uma causa de diminuição de pena — quando poderia, com base nos autos, quem sabe, ser absolvido —, quanto os delatados, que ficam à mercê de toda sorte no processo.
Como se vê, violam-se, a um só tempo, os princípios do devido processo legal, do contraditório e de ampla defesa. A imparcialidade do magistrado, como corolário do due process of law, resta igualmente prejudicada no momento da homologação do acordo, de vez que ali já se projeta, por meio do negócio jurídico processual, a futura sentença penal condenatória. Noutros dizeres, queira ou não, é o Ministério Público quem, em verdade, “constrói” a porvindoura (e certeira) sentença penal condenatória.
O contraditório passa a ser mera simbologia jurídica, letra fria e sem eficácia. Numa leitura mais aprofundada, garante-se ao acusado somente o contraditório formal — direito à informação —, olvidando-se completamente do contraditório substancial, como sendo o direito de influenciar, de fato, no processo cognitivo do julgador.
Em síntese, e à guisa de conclusão, valendo-se outra vez mais das precisas ponderações de Daniel Del Cid:
“Homologado o acordo, o magistrado estará comprometido com os termos do acordo e com a tese acusatória, ficando absolutamente contaminado com seu teor, prejudicando o desenvolvimento do processo, impedindo que se entregue uma sentença comprometida com a promessa constitucional de seu justo e devido processo legal”.
Em outras palavras, a homologação do acordo de delação premiada estimula e obriga o juiz a já intervir, em fase preliminar, valorando todos os elementos de prova, exibindo sinais fortes, objetivos e contundentes de sua parcialidade, forçando um nítido interesse subjetivo na condução do processo, impedindo a apreciação do contraditório pela defesa em que o juiz ficará refém de seu subconsciente[11].
Diante de todos os argumentos até aqui substancialmente trabalhados, forçoso concluir-se que os parágrafos 7º e 8º, do artigo 4º, da Lei 12.850/13, trazem evidente causa de contaminação cognitiva e violam, insofismavelmente, a sistemática processual contida na Constituição Federal.
Percebe-se que o juiz, ainda que se sinta isento para julgar, no seu inconsciente, no momento da homologação do acordo de colaboração premiada, já estará assumindo o compromisso de conceder o prêmio ao colaborador e, por consequência, condenar, nos termos da colaboração, os delatados.
Assim, em que pese a homologação ser uma causa objetiva de atuação do juiz (estabelecida em lei), por afetar diretamente a cognição do julgador, deve ser encarada como nítida hipótese de suspeição, tendo em vista que atinge a subjetividade do magistrado, impedindo-o de dar um justo provimento judicial.
Destarte, diante do cenário delineado no presente artigo, duas soluções afiguram-se possíveis para resolução da problemática, quais sejam: (i) a declaração, incidental ou concentrada, da inconstitucionalidade do artigo 4º, parágrafos 7º e 8º, da Lei 12.850/13; ou (ii) a aprovação do PL 8.613/2017, de autoria do deputado federal Expedito Netto, de Rondônia, segundo o qual “o juiz que homologar o acordo de colaboração premiada fica impedido de processar e julgar a ação penal em que será utilizada, devendo remeter os autos ao julgador que o substitui em casos de impedimento”.
Fonte: www.conjur.com.br

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