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quinta-feira, 12/12/2024

A transação tributária e o Mercador de Veneza

Guilherme Carvalho[1]
Mitale Sampaio[2]
À medida que envolve um figurino sofisticado e com as mais variadas conotações jurídicas, William Shakespeare, em “O Mercador de Veneza”, constrói uma das mais atraentes tramas que aportam no mundo contemporâneo, interessando, dentre tantos instigantes temas e questionamentos apresentados na obra, o oneroso contrato firmado entre o judeu Shylock e o cristão Bassânio, tendo por garantia, em caso de não pagamento, uma tira de carne do garante e também cristão Antônio.
As obrigações tributárias, no sistema tributário brasileiro, por vezes relembram o contrato que norteia a história contada por Shakespeare na Veneza do Século XVI. Embora nossa democrática aparelhagem constitucional reclame a preservação da dignidade da pessoa humana, é induvidoso que, por vezes, do contribuinte se lhe retira, quando do não pagamento dos complexos tributos que lhe são impostos, uma “libra de carne”, em forma de sangue, suor e lágrimas. A Receita Federal brasileira é nosso Shylock.
Se é certo que ao Poder Público não é conferida a plena autonomia da vontade ínsita aos particulares, pois a vontade da Administração Pública é formada mediante um plexo de atos e procedimentos administrativos, às vezes é possível o Poder Público ajustar, desde que haja lei em sentido autorizativo. Para viabilizar o adimplemento das obrigações assumidas pelo administrado, tal qual nas soluções apresentadas por Pórcia quando do julgamento de Antônio, chancelou-se, por meio de lei (Lei nº 13.988/20), a transação tributária no Brasil, norma esta que “estabelece os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária”.
Ocorre que aludida lei, extremamente benéfica ao Poder Público, na verdade muito mais se afeiçoa a uma aceitação, similar à concordância de Antônio quanto às condições impostas por Shylock; para salvar Bassânio, Antônio não hesitou! Caro leitor, todos os dias o contribuinte brasileiro se sujeita a uma adesão ou a um parcelamento – ou a algo minimamente parecido (e sempre sugerido como um beneplácito).
Pois bem. A Lei nº 13.988/20, ao tempo em que assevera que “a União, em juízo de oportunidade e conveniência, poderá celebrar transação em quaisquer das modalidades de que trata esta Lei, sempre que, motivadamente, entender que a medida atende ao interesse público” (§ 1º do art. 1º), conjuntura, assim como Shylock impusera a Antônio, esta mesma transação a uma condicionante de pura e estrita adesão (hipóteses do art. 2º), salvo uma única hipótese de proposta individual, relacionado à cobrança de créditos inscritos na dívida ativa da União (inciso I do art. 2º da Lei nº 13.988/20), que pode ou não ser aceita pelo Poder Público. Pragmaticamente, não há qualquer transação.
Assim como Antônio vai ao encontro de Shylock, que oferece suas condições e termos de cumprimento para que o empréstimo possa ser efetivado, no Brasil o que ocorre, na prática, é uma transação tributária em que há uma verdadeira submissão do contribuinte ao pacote oferecido pela Administração Pública; ou adere, ou não transaciona.
Ora, transação é cessão mútua, é um sinalagma, onde há perdas e ganhos, de onde emergem ajustes, convenientes não só ao Poder Público, mas também à outra parte. O que a União ousa abonar é tão apenas parcela do que já não é justo – parte dos abusivos juros e demais encargos impostos ao contribuinte. A cedência do Fisco condiz com o sangue que escorre pela libra de carne rotineiramente já retirada do sujeito passivo da obrigação tributária.
À espera da advogada Pórcia, o contribuinte brasileiro (Antônio) anseia um julgamento justo, uma transação tributária com paridade de direitos e obrigações, que não se concretizem em meras adesões, sempre na expectativa de que mais nenhuma gota de sangue seja derramada e que, um dia, a carga tributária seja suficientemente adequada, permitindo manter intactas todas as libras de carne de seu já castigado corpo.
[1] Guilherme Carvalho é Doutor em Direito Administrativo e Mestre em Direito e Políticas Públicas. Ex-Procurador do Estado do Amapá e advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados. Bacharel em Administração. guilherme@guilhermecarvalho.adv.br
[2] Mitale Sampaio é Advogada, Pós Graduada em Direito Tributário pela FGV-SP. Diretora do Instituto Mineiro de Direito Tributário – IMDT. Integra a Comissão de Direito Tributário da OAB/SP.  Membro da Associação dos Advogados de São Paulo. mitale@bvalaw.com.br
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