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sábado, 05/07/2025

O Processo, de Kafka, 100 anos: ainda diante da porta da Lei…!

“A porta da Lei está aberta”, diz o porteiro togado. “Ela é sua. Mas não sem pré-questionamento. Não sem impugnação específica. E, sobretudo, não sem jurisprudência consolidada a seu favor. Não sem tese, tema ou enunciado. Aliás… você leu o Tema 339? Aqui não se é obrigado a examinar todas as teses defensivas.  Ah, também não me venha com fatos.” “A cada porta há uma súmula mais forte.” “Ou uma tese.”

Em Diante da Lei, Kafka nos apresenta, nesse vigoroso livro chamado O Processo, uma parábola em que um camponês, diante da promessa de Justiça, se vê barrado por um porteiro.

Há centenas de livros interpretando O Processo. Porém, para mim, O Processo retrata vigorosamente o instrumentalismo processual. Não esqueçamos onde foi escrito esta obra. E quando. E não olvidemos qual era o Zeitgeist. Socialismo processual, que chegou ao Brasil muitos anos depois. Instrumentalismo —­­­ eis o nome da coisa. Escopos processuais — eis “a coisa do é”. E não “o é da coisa”.

Ativismo, jurisprudência defensiva, súmula surgida do cível decepando recursos no crime — eis o retrato do neoinstrumentalismo das formas.  Por isso O Processo continua tão forte. Tão machucador.

Os tribunais superiores se transformaram em um portão inexpugnável, uma autêntica muralha instrumental composta de súmulas, temas, teses (precedentes que não são verdadeiramente precedentes), filtros de admissibilidade e tudo vitaminado, mais recentemente, por algoritmos. Verdadeiros snipers epistêmicos. Tudo de um realismo jurídico, tão ao gosto do ceticismo dos precedentalistas. Claro, se o direito é indeterminado, melhor para os órgãos que “determinam” o que é o direito. Além de fazerem “estoques de normas” para o futuro, como disse o presidente do TST recentemente.

A porta da lei foi capturada por uma lógica instrumentalista do processo, que legitima a negação de justiça sob o pretexto da “eficiência” e de filigranas jurídicas.

Mas havia mecanismos para evitar esse neoinstrumentalismo: basta(va) cumprir à risca o artigo 926 do CPC em todas as disciplinas jurídicas. Já pensaram em usar o dispositivo na justiça do trabalho? E o que dizer dos dispositivos mais descumpridos do ordenamento, os artigos 489 do CPC e seu espelhamento, o artigo 315 do CPP? Ali estão seis preciosos dispositivos que, cumpridos à risca, alterariam a feição da aplicação da justiça.

 

 

Para lembrar: os artigos 489 e 315 estabelecem que não se considera fundamentada a decisão que…e seguem seis requisitos para que a decisão possa ser considerada bem fundamentada. Ausente uma delas, a decisão é nula. Esse era o “espírito” de quando os seis incisos foram introduzidos no então projeto do CPC. Na contramão, um tema do STF, o 339, revoga um dos incisos. E o que dizer de um acordão do STJ (AgInt no REsp 2.085.991/SP) que  praticamente elimina a ratio do inciso VI [1], criando a ficção de precedentes qualificados e persuasivos (tratei do tema em artigo nesta ConJur; também neste artigo) — sendo que o “precedente” que estabeleceu a distinção ele mesmo não é qualificado [2].

Em tempos de radicalização dos instrumentos defensivos, ganha força o que resta da crítica do direito, hoje enfrentando o processo de fagocitose promovida pelo precedentalismo e pela IA que vende precedentes nas redes sociais. Já não se usa doutrina nas salas de aula dos cursos de direito. Aliás, alguém tem visto alunos carregando livros nos corredores das faculdades? Onde estão os livros?  A teoria do direito é trincheira. Para dizer que ementa e tema não são precedentes. Cumprir os dispositivos que tratam da velha questão “direito é discussão de casos” é um ato revolucionário.

Kafka, cem anos depois, nos lembra que a porta da lei permanece diante de nós, imponente e enigmática. Seu “camponês” é agora todos nós, confrontados com súmulas, temas e precedentes que transformam o acesso à justiça em um labirinto de regras e filtros.

O Processo, em sua essência atemporal, segue como um espelho incômodo de nossas estruturas jurídicas, em que a promessa de Justiça, tantas vezes, é uma espera interminável. Que seus 100 anos sejam um convite para refletirmos, não apenas sobre a obra, mas sobre o que fazemos com as portas que deveriam estar abertas, mas permanecem fechadas por nossa própria construção.

Somos a um só tempo camponeses e porteiros.

[1]  Pergunta de um milhão de CPCs: Se o STJ estabelece uma distinção entre precedentes qualificados e persuasivos, por qual razão ele mesmo utiliza os precedentes não qualificados como se fossem qualificados e rechaça recursos lançando mão de precedentes não qualificados contra outros precedentes não qualificados?

[2]  Pablo Malheiros escreve sobre isso.

é professor, parecerista, advogado e sócio fundador do Streck & Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br

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