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quinta-feira, 28/03/2024

SENSO INCOMUM Limites da ação rescisória em face da coerência e estabilidade do Direito

 

Quando o Código de Processo Civil estava na reta final, escrevi inúmeros textos denunciando problemas com relação a vários pontos controversos.

Um deles era a necessidade de termos um mecanismo que fosse, ao mesmo tempo, um direito fundamental e um dever do mesmo jaez relativo à fundamentação das decisões judiciais. Ou seja, o objetivo era buscar retrancas contra um vai-e-vem no plano da produção da jurisprudência, impedindo que as partes venham a ser surpreendidas com sentenças e acórdãos ad hoc. Reuni-me com alguns juristas, como Fredie Didier, Dierle Nunes, Luiz H. Volpe e Marcelo Cattoni, mais o relator, deputado Paulo Teixeira, e todos acataram minha “emenda”, que acabou se transformando no artigo 926 do CPC: os tribunais devem manter a estabilidade, a coerência e a integridade da jurisprudência.

A literatura hoje já é vasta a respeito disso.[1] Ministros e professores tratam da importância desse dispositivo, baseado na doutrina de um dos juristas mais importantes do século XX: Ronald Dworkin, o artesão do direito como integridade. Um breve busca na jurisprudência dos tribunais mostra a importância desse dispositivo.

Isto porque é um direito da parte ver seus pleitos decididos com base na (i) coerência, que quer dizer: as decisões judiciais devem respeitar uma consistência lógica no julgamento de casos semelhantes, garantindo aplicação isonômica das normas; (ii) e na integridade, que quer dizer: o respeito das decisões judiciais à Constituição e às demais normas do ordenamento jurídico como um todo.

Já a (iii) estabilidade, por sua vez, está diretamente atrelada à preservação da segurança jurídica e, portanto, de um conjunto de expectativas processuais. Impossível dissociá-la da autoridade da coisa julgada. Anterior à própria ideia de Constituição, a coisa julgada pode ser compreendida como um imperativo pragmático do qual depende todo sistema jurídico, ao menos desde os romanos. Sem ela não haveria confiança no Direito.

E, com isso, chego à ação rescisória, antítese da coisa julgada. Tal instituto, como se sabe, sofreu uma série de aperfeiçoamentos, inclusive na redação das hipóteses de cabimento, passando a receber um tratamento mais restritivo e rigoroso do que aquele previsto nos códigos anteriores.

No plano teórico, por exemplo, observa-se o avanço do legislador ao corrigir a hipótese de rescisão da decisão que violar literal disposição de lei (art. 485, V, CPC/73). Na verdade, ao estabelecer que cabe a rescisão da decisão que violar manifestamente norma jurídica (art. 966, V, CPC/15), o legislador superou o vício do legalismo exegético.

Assim, não é que qualquer violação à norma jurídica que poderá ser objeto de ação rescisória. Ela deve ser manifesta. Mas o que isso quer dizer? Explico. Manifesto é algo que está à mão; algo que pode ser facilmente apreendido (e compreendido), que se apresenta sem qualquer complexidade; aquilo que se mostra evidente, que se revela às claras, que salta aos olhos. Manifesto é uma coisa insofismável; que não se consegue negar; aquilo não pode ser contestado, nem ocultado, porque óbvio.

O que se conclui, portanto, é que, ao tratar da quinta hipótese de cabimento da ação rescisória, o legislador avançou ao superar o paradigma (exegético) da lei, ingressando no campo (hermenêutico) da norma. No fundo, o legislador do CPC-2015 acatou a tese vencedora de Friedrich Müller, de que a norma é o sentido atribuído ao texto, sacramentando também a hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. Isto é, texto e norma são coisas diferentes. Pode-se afirmar, desse modo, que o legislador, com o propósito de não ampliar o espectro de manejo da rescisória, lançou mão do conceito de manifesta violação.

Vou tentar explicar isso de forma mais didática. Herbert L.A. Hart, um dos teóricos mais famosos do mundo (a obra seminal O Conceito de Direito, citado em nove de dez trabalhos científicos), é um autor que pode nos ajudar a entender o que significa violar manifestamente uma norma.  Hart entende que os casos simples são resolvidos por subsunção. Já os casos difíceis são resolvidos por discricionariedade judicial — o juiz atua como um “legislador intersticial” nos casos em que se observa a “zona de penumbra”, própria da linguagem. Mas aqui entro no ponto: para Hart, esse poder discricionário possui limitações e, para demonstrar seu argumento, traz a metáfora do jogo de críquete, que desde os anos 80, no Brasil, vem sendo adaptada para o futebol, mais próximo de nossa realidade.

A ideia é bastante simples: o árbitro do jogo pode marcar uma penalidade centímetros para fora da linha da grande área, que será considerado dentro da “zona da penumbra” ou “zona da franja”. Todavia, o árbitro não pode marcar uma penalidade máxima a dois metros da grande área, ou seja, muito distante do seu perímetro. Na verdade, ele até pode fazer isso, porque tem poder para tal. A questão a saber é como o árbitro decidirá quando os demais jogadores passarem a reivindicar marcação igual, a partir do precedente, em outros lances fora da área. Sua decisão valerá, ainda que manifestamente contrária às regras. O problema é que já não será um jogo de futebol, mas, sim, um jogo das regras do árbitro.

Portanto, manifestamente contrária à lei será uma marcação de um pênalti no meio campo ou a alguns metros da grande área. Mesmo um autor como Hart entende que há limites. As regras são constitutivas da própria prática enquanto prática. Fora delas, paradoxalmente, já não será mais aquilo que é.

Nesse contexto, o ponto que me interessa reside em saber como o instituto da ação rescisória pode ser compreendido à luz da exigência conferida aos tribunais de manter sua jurisprudência estável, coerente e íntegra. Esse é um ponto ainda pouco explorado.

O primeiro aspecto que chama atenção é a atualidade e a inteligência da Súmula 343 do STF: Não cabe ação rescisória por ofensa a literal dispositivo de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.

Aprovada em 1963, sob a vigência do CPC/39 — cujo artigo 798, inciso I, remetia à literalidade do dispositivo legal — o enunciado já antecipava que a existência de controvérsia envolvendo a interpretação da norma não serviria para fundamentar a rescisão da coisa julgada.

Eis o problema hermenêutico da multiplicidade de interpretações possíveis, que já assombrava os juristas nessa época. Uma arqueologia dos precedentes que resultaram na edição da Súmula me levou ao RE 50.046/RJ, de relatoria do ministro Victor Nunes, no qual o STF decidiu que não cabe rescisória para corrigir interpretação de lei, ainda que possivelmente errônea. Nas palavras do eminente relator: “A má interpretação que justifica o iudicium rescindens há de ser de tal modo aberrante do texto que equivalha à sua violação literal. A Justiça nem sempre observa, na prática quotidiana, esse salutar princípio, que, entretanto, devemos defender, em prol da estabilidade das decisões judiciais”. Veja-se: já então tínhamos o “aberrante”. Hoje, o manifestamente.

Como se vê, desde a década de 60, a jurisprudência da Suprema Corte fixou um parâmetro normativo que permanece válido. Do teor da Súmula 343 conclui-se que a existência de várias interpretações possíveis impossibilita a ação rescisória por violação literal da lei. Isso significa dizer que a autoridade da coisa julgada deve prevalecer sobre a uniformização da jurisprudência.

Com o advento da Constituição de 1988, o STJ, o sentinela da legalidade, responsável pela uniformização da jurisprudência, passou a solucionar o problema da divergência na interpretação da lei pela via do recurso especial (art. 105, III, c, CR). Ou seja: o constituinte seguiu a tradição consagrada nos tribunais de oferecer um caminho processual que não colocasse em xeque a preservação da coisa julgada.

A título ilustrativo da complexidade que envolve essa matéria, recorro a uma controvérsia que aguarda julgamento no Tribunal da Cidadania e que revela todas as nuances desse imbroglio: a AR 6.436 (Rel. Min. Francisco Falcão) e a AR 6.590 (Rel. Min. Assusete Magalhães). Vejamos:

Em 14/4/2015, a 1ª Turma do STJ negou provimento ao recurso da União no AgRg no REsp 1.460.528/SP, de relatoria do Min. Napoleão Nunes Maia Filho, confirmando decisão do TRF da 3ª Região. O acórdão, após agravos e embargos da União, assentou a natureza vencimental da gratificação de atividade tributária (GAT) atribuída aos auditores fiscais da Receita Federal. Essa decisão transitou em julgado em 3/2/2017. Ainda que baseado em precedentes genéricos, o acórdão instituiu um padrão decisório sobre matéria nova. O caso é objeto da AR 6.590, autuada em setembro de 2019, que aguarda julgamento.

Em 5/4/2017, ao julgar o mesmo tema, nos autos do AgInt no REsp 1.585.353/DF, também de relatoria do Min. Napoleão Nunes Maia Filho, deu-se provimento ao recurso da entidade sindical, para novamente reconhecer a natureza jurídica de vencimento da GAT, desta vez reformando acórdão do TRF da 1ª Região. A União sequer recorreu. O trânsito em julgado foi certificado em 14/6/2017. Essa decisão é objeto da Ação Rescisória 6.436, distribuída em abril de 2019, cujo julgamento encontra-se suspenso em face de pedido de vista, com dois votos favoráveis à rescisão.

A análise dos referidos procedimentos permite, hermenêutica e processualmente, concluir que:

(a) o AgRg no REsp 1.460.528/SP é o precedente (norma);

(b) esse precedente (norma) foi observado no julgamento do AgInt no REsp 1.585.353/DF;

(c) por meio dessas decisões, uniformizou-se a jurisprudência, encerrando divergência de posicionamentos no âmbito do TRF1ª e TRF3ª.

Em outras palavras: o precedente passou a integrar o sistema jurídico, estabelecendo parâmetro normativo. Posteriormente – e esse ponto também é importante para futuras questões que discutam limites da rescisória – , quando decidiu novo caso em conformidade com o precedente, o Tribunal da Cidadania julgou de maneira coerente, assegurando um tratamento isonômico no plano processual. E ao prestigiar a coerência, assegurou a integridade e a estabilidade da jurisprudência. E do Direito.

Afinal, é desse modo que se forma a jurisprudência e, com isso, se estabilizam as expectativas. Esse é o ponto: a expectativa do utente é de ter um sistema que lhe proporcione estabilidade. É assim que, satisfazendo as exigências do artigo 926, CPC, a Corte cumpre o papel que lhe foi designado constitucionalmente.

Por isso, não parece que a ação rescisória seja o instrumento idôneo para desconstruir a jurisprudência que o STJ começou a sedimentar. Observemos que nem mesmo análises consequencialistas servem para justificar eventual pretensão rescisória. A coisa julgada vale mais. Muito mais. Porque ela produz a confiança da qual depende o funcionamento de todo o sistema. Dizendo de outro modo, até porque hoje muito se fala no consequencialismo da LINDB: essa é uma questão jurídica e não de fato. Esse é outro ponto pelo qual o direito brasileiro precisa marcar um encontro para discutir temáticas como: em que circunstancias o consequencialismo adentra? Não pode ser ad hoc. Até porque, se o tribunal decidiu soberamente uma ação e transitou em julgado, o único argumento que não pode ser usado para rescindir o acordão é o consequencialismo. Não consta que, para além da violação da norma, esteja a questão de olhar as consequências de uma decisão. Consequencialismo não é argumento decisório apto a servir de fundamento para superar julgados que foram exarados de acordo com a coerência e integridade da jurisprudência. Hoje em dia esse é um ponto para o qual devemos nos atentar. Voltarei a esse ponto em futuro texto.

A coisa julgada é a própria condição de um processo democrático. Afinal, coisa julgada é mais do que uma garantia do Direito. É do próprio Estado Democrático. Fragilizar a autoridade da coisa julgada é fragilizar a autoridade do Direito – o que, em última análise, significa fragilizar o próprio conceito de república. Daí a preocupação com esse conceito nesse patamar, como se pode ver na doutrina de Ovídio Baptista e Nelson Nery Jr, para falar apenas desses dois importantes processualistas.

Nesse exato sentido, aliás, merece destaque a posição firmada pelo Supremo Tribunal Federal, no recente julgamento da AR 2.297, de relatoria do Min. Edson Fachin, em que se consignou expressamente: “Não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente […] Isto é, a modificação posterior da diretriz jurisprudencial do STF não autoriza, sob esse fundamento, o ajuizamento de ação rescisória para desfazer acórdão que aplicara a firme jurisprudência até então vigente no próprio Tribunal”.

Finalizo com o resumo da minha preocupação, agregando ainda alguns pontos para futuras pesquisas: se o STJ rescindir o acordão em questão, estará violando não somente o artigo 966, inciso V, do CPC, como também outro dispositivo não menos importante: o artigo 926. E o pior: como STJ estará produzindo uma nova norma individual (para recordar Kelsen), então ele estará estabelecendo que esse é o novo parâmetro decisório, o que significa dizer que a ação rescisória tornar-se-á uma via oblíqua para a discussão e a formação de precedentes, uma vez que invadirá a esfera das divergências interpretativas. Por onde passa um boi, passará também a boiada? E o que dirá o STF quanto à sua Súmula 343 a partir de então?”

A meu ver, em nome da higidez epistemológica dos conceitos jurídico-processuais, seria um movimento perigoso, porque afeta a estabilidade das decisões e, portanto, ameaça a segurança jurídica, na medida em que já não haverá mais as salvaguardas previstas nos dispositivos que tratam da vedação de rescisão da coisa julgada e da exigência de os tribunais manterem a jurisprudência estável, coerente e íntegra.


[1] V.g, Hermenêutica e Jurisprudência no Código de Processo Civil Coerência e Integridade, coord. por Eduardo Arruda Alvim,  George Salomão Leite e Lenio Luiz Streck. São Paulo Saraiva, 2018; Processo Constitucional Brasileiro, de Geroge Abud. São Paulo, RT, 2020, entre dezenas de obras.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e titular da Unisinos (RS) e da Unesa (RJ).

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 10 de junho de 2021

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