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terça-feira, 23/04/2024

Cláusula Penal do jogador de futebol

Andre Meira
Vocês acham justo um atleta trabalhar menos de três meses, jogar 45 minutos por um clube e ganhar na justiça 3 milhões e meio de reais? E ficar dois meses, entrar em campo 2 vezes e ganhar quase 2 milhões de reais em juízo? Pois aconteceu. E muito. Vocês não tem ideia do quanto. Bom, os romanos diziam que o Direito é a “ciência do justo e do injusto”, portanto, vamos ao tema. A finalidade deste artigo é justamente tecer alguns comentários sobre a interpretação jurídica que se deu e que se dá à aplicabilidade da cláusula penal nos contratos de trabalho dos jogadores de futebol, fomentando e aplicando a hermenêutica jurídica na gramática da lei. Quando ouvimos falar de um atleta de futebol que trabalhou no clube por um curtíssimo espaço de tempo (às vezes sem nem entrar em campo), teve seu contrato rescindido antes do término do prazo e tem direito a receber uma verdadeira fábula, estamos falando, primordialmente, do valor estabelecido na cláusula penal (de natureza eminentemente desportiva) acordada entre o clube e o atleta no ato da contratação.
A cláusula penal é obrigatória nos contratos de trabalho dos atletas de futebol e está disciplinada no art. 28 da Lei 9.615/98 (Lei Pelé), que assim está redigido: “A atividade do atleta profissional, de todas as modalidades desportivas, é caracterizada por remuneração pactuada em contrato formal de trabalho firmado com entidade de prática desportiva, pessoa jurídica de direito privado, que deverá conter, obrigatoriamente, cláusula penal para as hipóteses de descumprimento, rompimento ou rescisão unilateral”. Assim, com o fito de resguardar o retorno dos investimentos realizados para com os atletas, inclusive dos aliciamentos realizados por outros clubes de futebol, a Lei 9.615/98 convencionou a inclusão nos contrato dos atletas de uma cláusula penal, dispondo uma indenização a ser paga somente pelo atleta caso este deseje se transferir para outra agremiação. A natureza e finalidade da cláusula penal é impedir a transferência de um atleta profissional para outra agremiação desportiva, antes do término do contrato, sem o pagamento de uma compensação financeira, já que não seria justo que a agremiação investisse no atleta, e que ele a deixasse sem pagamento de qualquer importância no sentido de retribuir tal investimento.
O objetivo da incorporação desse instituto à relação profissional entre atletas e clubes é justamente atender às peculiaridades dessa relação jurídica, em virtude, notadamente, do fim do antigo “passe” (que era vigente na Lei Zico). Em verdade, tanto a cláusula penal quanto o “passe” apresentam a mesma finalidade, pois funcionam como fator de compensação pela extinção do vínculo jurídico. Entretanto, na vigência do instituto do “passe”, o vínculo trabalhista e o vínculo desportivo coexistiam, enquanto no atual regime jurídico, o vínculo jurídico é unicamente o vínculo trabalhista, sendo o vínculo desportivo de natureza acessória. Cabe ainda destacar que a cláusula penal, no Direito Desportivo, não se submete ao limite da legislação civil, que corresponde ao valor total da obrigação principal. O tratamento dado pelo legislador, na relação entre atleta e clube, funciona, como não poderia deixar de ser, de forma protetiva às entidades de prática desportiva. Para tanto, observe-se que o § 3º do art. 28 estabelece que o valor da cláusula penal terá o limite máximo de cem vezes o montante da remuneração anual pactuada, o que pode representar milhões, mesmo quando se consideram os fatores de redução da cláusula penal, previstos no § 4º do mesmo artigo.
Não obstante a cláusula penal ter-se incorporado como sucessora do “passe”, ainda prevalece a possibilidade de aplicação da multa rescisória nos contratos profissionais de trabalho entre atletas e entidades de prática desportiva (artigo 479 da CLT). Aí entra a discussão: O clube, ao rescindir o contrato de um atleta que se revelou péssimo jogador no terceiro mês de contrato deverá pagar a ele tanto a cláusula penal milionária quanto a multa rescisória já prevista na CLT (bilateralidade)? Ou deverá pagar somente a multa rescisória prevista na CLT, pois a cláusula penal é de natureza desportiva e é devida ao clube e não ao atleta (uniteralidade)? Por uma razão óbvia, tão óbvia quanto simples, aos olhos de qualquer julgador justo, a segunda alternativa é a correta. Mas, infelizmente, por muitos anos diversos juízes não pensaram desta forma e aplicaram a primeira opção, condenando os clubes deste país a pagar milhões a jogadores pernas de pau que trabalharam pouquísismos meses, distorcendo a inteligência da Lei Pelé. Ou seja, criou-se a melhor profissão do mundo: “O péssimo jogador de futebol”.  Contudo, o TST, ainda bem, parece que pacificou o entendimento de que a cláusula penal é devida somente ao clube em caso de rescisão de contrato por parte do atleta, mas, por outro lado, o legado do passado deixou os cofres dos clubes recheados de dívidas impagáveis com trabalhadores que não trabalham um semestre sequer. Triste e irreversível.
É claro e cristalino como água que a cláusula penal de natureza desportiva é de responsabilidade exclusiva do atleta e deverá ser paga por ele ou pelo clube que o contratar quando este der causa ao encerramento do vínculo empregatício durante o contrato. Querem um exemplo? João, jogador do Remo, está dando um show durante o campeonato paraense, revelando-se um craque de bola. De uma hora pra outra os dirigentes remistas recebem uma ligação do Real Madrid, que deseja o João no seu time para o campeonato espanhol. Aplica-se a cláusula penal, tendo o Real Madrid que desembolsar os milhões da cláusula contratual do João aos cofres do glorioso Clube do Remo, como forma de compensação. É para isto que ela serve e não para enriquecer os péssimos jogadores da noite pro dia, como já foi feito com muita habitualidade (e acho que ainda é feito), infelizmente. Está evidente que precisamos, urgentemente, de uma legislação trabalhista específica para a atividade futebolística.
André Malcher Meira, é advogado, professor, presidente do Instituto Silvio Meira e membro da Academia Brasileira de Direito. E-mail: malchermeira@hotmail.com

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